Por
Juliana Berlim___
A vegetariana de Han Kang (Editora Todavia, 2018)
A literatura, por vezes, emerge de sonhos. Seja da perturbação noturna de Gregor Samsa em A metamorfose de Franz Kafka, seja, dilatando a ideia de literário, da sequência onírica expressiva da peça O sonho, do dramaturgo sueco August Strindberg, o texto poético vem fazendo uso há bastante tempo da ocorrência de sonhos como solução, explicação ou mesmo justificativa de fenômenos que soam inexplicáveis do ponto de vista do realismo. A autora sul-coreana Han Kang parte de premissa semelhante: coloca sua protagonista, Yeonghye, dominada pela forte impressão deixada por uma série de sonhos terríveis que a levam a não querer mais comer, cozinhar, servir ou comprar carne. Graças a esta simples tomada de decisão, súbita e absolutamente pessoal, a moça, bem como os leitores, é levada a (re)conhecer o machismo, a indiferença e a brutalidade das pessoas que a cercam.
Yeonghye
passa por um processo voluntário de abandono do humano, em trânsito
entre os reinos animal, vegetal e mineral. Mas, combinado a ele,
temos o processo de desumanização paralelo conduzido por seus
parentes, que vão deixando claro a funcionalidade de Yeonghye
em suas vidas, mostrando-a, na maior parte dos casos, como peça-chave
em seus processos de ascensão social. A Yeonghye
esposa e filha de jovem promissor da malha urbana de Seul é
conveniente e, portanto, tolerável. A partir do momento em que o
radicalismo de seu vegetarianismo atrapalha as conveniências de suas
relações conjugais e familiares, percebe-se o quanto a personagem
está envolvida em uma malha de manipulação patriarcal que
culminará em seu isolamento social.
O
recurso narrativo empregado por Kang
é não dar voz, em nenhum momento, à própria Yeonghye.
Até que ponto a moça está louca? Mas o livro não se debruça
sobre o desequilíbrio mental (aos olhos dos que cercam a
protagonista), e sim sobre os efeitos da atitude de recusa da jovem
em ser uma mulher onívora. Dos três relatos nos quais se divide o
livro, o último é o mais próximo da anima da personagem,
justamente o da irmã mais velha e fisicamente muito parecida com
Yeonghye,
metáfora para o espelhamento contínuo entre as duas irmãs
realizado pelas demais personagens. Perceba-se aqui a desintegração
e a reintegração de uma na outra.
Que
a história desta Bartleby
sul-coreana, até mais reativa e violenta que seu original, possa
sensibilizar os leitores brasileiros para a boa literatura produzida
na Coreia do Sul atualmente (como Sukiyaki
de domingo,
de Bae
Su-ah,
lançado no Brasil pela editora Estação
Liberdade),
em especial no tocante à condição da mulher na sociedade
sul-coreana contemporânea.
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Juliana
Belim é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio
Pedro II. Conduz no mesmo colégio, o projeto de iniciação
científica Neuromancers, de leitura e pesquisa sobre romances de
ficção científica, bem como faz parte do corpo docente da
pós-graduação Lato Sensu Ererebá – Educação Étnico-Raciais
no Ensino Básico. Participou de três edições da FLUP – Festa
Literária das Periferias, com a publicação de quatro contos no
total.