por João Gomes __
Dividido esquematicamente, De mim ninguém sai com fome nos oferta um apanhado de temas que, numa leitura descuidada, podemos acreditar que trata sempre da mesma presença/ausência, quando mais parece que tudo está associado ao “jeito de arrumar o ar no peito”, o ritmo suave no “muito do que eu dissesse poderia ser poesia”. Tendo o amado como o interlocutor de sua metalinguagem irônica e sem chatear o leitor, seu interlocutor de fora, a poeta mineira Norma de Souza Lopes, nascida em 1971 e autora de Borda, quer ser amada porque sabe que na poesia, como no amor, “é só esperar o dia bom”. Seus poemas, alguns, querem ser sussurrados em “decilitros de ar” sendo “quase um suspiro”, já noutros devemos gritar “e se foder com violência” num frenesi tipo Roberto Piva. O que mais encanta é isso partir de uma mulher que faz de seus anseios estéticos a representação pluralizada do desejo feminino sem, necessariamente, se fazer de objeto.
Se “amor era outra coisa”,
o múltiplo subjetivo pode dar conta por meio da autoficção ou do
imaginado pela poeta, a que está sempre buscando o quente da paixão,
que nunca será resgatada por “um grande leão branco”. Também,
se estamos acostumados com a poesia rebelde de Bukowski, onde ele
retrata suas companheiras, Norma pula da página e não quer “essa
pose de estátua”, prefere ser o que escorrega volátil pela vida
com “um fígado preparado pra falir”. Porque se há algo em sua
poesia que a torna contemporânea, além de estar a frente nos
assuntos muitos ainda tabu, é a linguagem com uma sintaxe que dá
gosto de dizer, a simplicidade elevada, que “não cabe em outras
palavras”. Talvez para que consiga isso com tanto êxito seja mesmo
preciso “advérbios sem mapas / substantivos puros” e a sacada
fisiológica diante do corpo em que muitas vezes “há lábios que
sozinhos / não se molham”.
No poema “tango”,
quando diz que
o coração apertado “às vezes infla / que é quando escrevo
poesia”, é a dança da inspiração que comove o esforço diante
do difícil aparentemente fácil de cuidar de um amor irreparável (a
poesia) e, ainda assim, “usava-o quebrado mesmo” na violência
“de leõezinhos famintos”, dando-lhes de comer. Assim como as
ridículas cartas de amor no poema de Pessoa, a poeta percebe a
tarefa carregada de mediocridade, mas nem por isso quer “envelhecer
e sentir menos”, deixando claro bem no início que “poesia mesmo
/ é ser sua sherazade / a nova sandy / sua bruna surfistinha / de
meia-idade”, já que “demorou um século pra eu ser sozinha
sem-vergonha”. O movimento não está apenas na transição de um
tempo para o outro,
mas também nos “cinquenta e dois / meneios de cabeça / em sua
direção”, quando ser “um bombom aberto / e isso nem sempre é
bom”: o volume completo é muito mais que se acomodar num erotismo
e lirismo fáceis.
A preocupação é não se
tornar clichê. Se escolher o amor é uma armadilha, onde, em alguns
momentos, caiu a poeta best-seller Rup Kaur, a gente “ainda bem que
se esquece / que o molhar dos lábios / e a mordida dos lóbulos /
são cenas repetidas” e, mesmo que poetas descrevam tudo isso, para
o amor “não há dublês”. Atualizando o poema “Congresso
internacional do medo”, de Drummond, Norma ao cantar o amor escreve
“por aqui / continua tudo / sob controle / do medo”, porque
“condenados e patéticos são os corpos / fora do estatuto do
desejo” e, incentivando o amor livre da revolução sexual,
“amam-se de dois em dois / e odeiam a cem”. Quem mais do que uma
poeta do calibre de Norma poderia atinar pra isso se não estivesse
no centro de sua atenção “ao que recusa / se mover”? Sabendo da
camada de calor que carrega consigo, conclui que “certos homens /
recusam-se a arder”, quando as mulheres estão prontas há séculos.
A imagem desse contexto está no poema em “combustão”, que foi
posto na sessão “assopradoras de ossos”, onde lamenta que “por
falta de um mapa de incêndios / e de companheiro incendiário / ardi
em altas labaredas / completamente desperdiçadas”.
Norma encarna os amores não
acontecidos, ditos platônicos, e não chega
a usar esse termo clichê, amor só de um lado, fantasiado na espera.
Sem nenhuma afetação de que possam pensar que se compara a um cão
“abandonado na estrada / no dia de sua mudança”, mesmo sabendo
que o amor é “uma meia dúzia de dias felizes por mês”,
fingindo que ama “para escrever um poema / (...) e criar os três
filhos que nunca teremos”. Quando diz ter escrito o “último
poema de amor”, é pra transcender e “encarar a vida sem tanta
moralidade”. Se aprendeu entre “cutelos & rastelos”, é “a
poesia que existe para as pessoas” e não o contrário. Se a poesia
passa muito bem, é sem alguém que não faz um poema valer por si
mesmo em sua importância enquanto linguagem. Como se fosse uma
senhora de 80 anos, no poema “perigo”, há o reflexo do avanço
do “último poema de amor”, quando aponta a mulher de hoje, “que
podes amar qualquer coisa”. Inclusive, há espaço para os
assexuais, “o amor não permite solidão: à xceção do amor a si
mesmo / mas isso já sabemos que não se aprende sem um espelho
amável”, quando o “reino incompleto” é o nosso verdadeiro voo
em tantas separações possíveis.
Mas não por ter uma fome
doravante, ou por acharem que a mulher existe apenas para saciar
fomes, surge o “chega um dia em que resta a uma mulher / aceitar a
triste tarefa / de ser assopradora de ossos”. Se temos a Norma em
cena triste no estilo Chaplin e melancólica como num domingo triste
de uma tela de Edward Hopper, temos na fúria dosada desse volume
etílico uma Norma arrebatadora e corajosa como na igualdade de
analogia em “abra com os dedos / os lábios da buceta / da bu-ce-ta
/ como homem que sacode o saco / quando quer xingar”. O poema que
dá o título ao livro é o Brasil alimentado no que pode ao alcance
dos temas da poeta, quando “não é preciso dizer / a palavra
lâmina / para saber o corte”, se apenas na poesia podemos preparar
“coquetéis molotov inócuos” sem nos tornar presos políticos
(vide Rafael Braga, condenado a 11 anos) na fragilizada democracia
“enquanto algozes da república / seguem perpetuando campanhas
eleitorais”.
Norma de Souza Lopes |
E cumpre-se, como a cadeia
alimentar, a manutenção desses vários eus que “com a alegria /
de quem corrige a torre de pisa” faz surgir “essa cunha na porta
da memória”. Este De mim ninguém sai com fome, do qual não
pude falar o mínimo, se inúmeras são as opções do cardápio, é
o meu novo A rosa do povo, livro de Drummond, do qual não se
desprende também uma pétala sequer da fragrância odorífera das
décadas em que foi escrito e tão atual. Este aqui, acredito que
também alimentará gerações que buscam a igualdade e, sobretudo, o
que é verdadeiro e humano. Porque poeta é aquele que destrincha a
problemática do seu tempo, e Norma sabe melhor que ninguém que
escrever poesia gera certa desconfiança crítica se “diante da
queda / da primeira pétala / há muito que se aprender”. E vem nos
passar tudo isso com o prazer do que deseja se consumar.
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* Norma de Souza Lopes é poeta, autora dos livros de poemas Borda (Patuá, 2014) e De mim ninguém sai com fome (Patuá, 2017) das participou antologias Versos da Violência da Editora Patuá, Entre lagartas e Borboletas da Scenarium Livros Artesanais, Antologia Senhoras Obscenas e de diversas publicações virtuais (Germina, Mallarmagens, InComunidades, Vida Secreta etc.). Escreve para a Revista Escritoras Suicidas. Blog: https://goo.gl/4RjsM9
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* Norma de Souza Lopes é poeta, autora dos livros de poemas Borda (Patuá, 2014) e De mim ninguém sai com fome (Patuá, 2017) das participou antologias Versos da Violência da Editora Patuá, Entre lagartas e Borboletas da Scenarium Livros Artesanais, Antologia Senhoras Obscenas e de diversas publicações virtuais (Germina, Mallarmagens, InComunidades, Vida Secreta etc.). Escreve para a Revista Escritoras Suicidas. Blog: https://goo.gl/4RjsM9
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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.