Nasci no Recife, capital do frevo, patrimônio
imaterial da humanidade. Digo mais: cresci no Recife Antigo, ou
Bairro do Recife, onde acontece o Carnaval de rua mais inclusivo e
multicultural do país. Mas só de alguns anos pra cá passei a
perceber como a festa de Momo acontece, ofertando todo o período
como palco do espetáculo, suas ornamentações e tradições
contendo tanta historicidade. O frevo, que nas palavras de Câmara
Cascudo é “a grande alucinação do Carnaval pernambucano”, o
maracatu da Rua da Moeda, os trios elétricos que arrastam multidões
no tão aguardado Sábado de Zé Pereira com o maior bloco de rua do
mundo, o Galo da Madrugada e etc. Isso sem falar nas ladeiras de
Olinda, com prévias todos os finais de semana muito antes e blocos
passando a todo instante. Eis nossa riqueza cultural que impulsiona a
economia antes e durante a festa.
É um privilégio ser recifense, viver o
ano todo esse desdobramento e preparo para que a festa aconteça,
gerando aquela saudade e ressaca esperando pelo próximo Carnaval.
Neste 2019, os homenageados são a cantora, compositora e
percussionista Gerlane Lops e o sambista Belo Xis. Nada mais justo do
que homenagear os representantes do povo, artistas que conseguem
chegar e fazer cantar e dançar nossa cultura popular. Ano passado
tivemos como homenageados Nena Queiroga, que não falta um Galo da
Madrugada com seus sucessos de frevo tão agarrados na efervescência
do sábado de calor e alegria, junto ao compositor Jota Michiles.
Nunca tinha visto um Carnaval tão bonito, dado ao povo como resposta
de que é possível, nem que seja por alguns dias ou horas, viver
ritmos e letras com tantas boas energias.
Claro que nem tudo são flores, e a
violência leva senão um pouco ou toda a alegria de alguns durante a
festa, tudo empacotado em estatísticas na tão temida quarta-feira
de cinzas. Antes é um momento de prevenção, de descobertas por
meio de exames rápidos de Dsts, campanhas contra o machismo,
lgbtfobia, de encontro de um amor e não apenas algo rápido em becos
ou banheiro químico, gerando em alguns casos precoces divórcios,
gravidez com autor sumido na folia. É a festa onde tudo acontece e
tudo só vale quando não tira o direito de existir do outro, que
ensina como é possível estar numa multidão. Costuma-se dizer que o
ano só começa depois do Carnaval, talvez também pelo que leva de
gastos durante toda a folia, e que pode ser recuperado depois.
Mascarados, fantasiados, travestidos, livres, enrustidos, curiosos e
tímidos, todos brincam. Ninguém fica de fora, ninguém se segura em
si, todos caem no furacão de ritmos, com ou sem dinheiro.
Não fosse algo bonito de se sentir e
ver, turistas não ocupariam toda a rede hoteleira, as residências
de Olinda não se alugariam e o encontro de povos de todos os lugares
do mundo não viriam para onde, como se transcreveu no piso do Marco
Zero, praça que abriga o polo mais importante e central: “Eu vi o
mundo... Ele começava no Recife.”, título de uma pintura de
Cícero Dias. De fato, temos esse espírito de grandeza, e daqui
saíram pro mundo e se inspiraram poetas, compositores, pintores.
Como não se sentir importante, se tudo que fazemos guarda tanta
vibração renovada ano após ano. O compositor Capiba, Alceu
Valença, Chico Science, Naná Vasconcelos, Antônio Nóbrega e
tantos outros. Um destes apenas acende a cidade inteira pro mundo
todo ver.
As reticências do título de Cícero
Dias em “Eu vi o mundo…” sempre me deixa receoso de como
acontecerá mais uma vez esta festa, que pra muitos pode
ser a última. Ainda mais quando sabemos que o mal ao povo, este
mesmo povo que não se mobiliza por um país melhor, mas que lota as
ruas para fugir da mesma realidade que ele constrói, pode estar num
fiasco dia após dia. Com o pronunciamento de Paulo Guedes, entre o
“coração mole da esquerda” e o “coração não tão bom da
direita”, ficamos divididos a um extremismo que tenta reduzir e
simplificar direitos e liberdades. E o Carnaval rompe tudo, chega
chutando a porta, com sua doce ilusão por meio das canções, do
comportamento de efemeridade proveitosa muitas vezes irresponsável.
Mas não nos negamos: é o momento de esquecer tudo
É como no que ouvimos e dançamos em é
“um bicho comendo o outro” de maneira tão canibal e desumana.
Atualizando a canção seria um fascista matando sob a máscara da
imbecilidade outro, matando ativista de direitos de interesse a quem
mais precisa, impedindo que o pobre possa ingressar na universidade
pública, agredindo quem pensa diferente e se justificando em nome de
Deus. Este Carnaval é mais que cultural, é político no sentido
simplista da palavra, entupido de moral e escasso de ética do
judiciário e do legislativo. Até pouco tempo, Bolsonaro desceria
não a rampa do planalto, mas sim as ladeiras de Olinda como um
boneco gigante, provocando disputas acirradas pelo que já foi
disparado contra o povo sem exceções. É Dominguinhos quem canta:
“Quem é rico mora na praia. Mas quem trabalha nem tem onde morar.”
Boa e triste analogia do que se sujeitou o povo em nome de um emprego
possibilitado apenas por curso técnico, sem direitos numa
escravidão disfarçada de conquista.
Em pensamento só peço uma coisa ao
Bicho Maluco Beleza da canção de Alceu Valença, que “Com teu
charme, teu mistério, teu sorriso largo, és o terror da família,
não tens compaixão”: que este Carnaval possa mostrar que podemos
todos ir juntos, que somos em algum sentido todos iguais, somos da
mesma nação e aqui no Recife todas as regiões e expressões
culturais se misturam. Eu mesmo já fui violentado durante o
Carnaval, que com tamanha revolta consolei o meu direito de ir e vir
me fazendo escrever um poema que transcrevo aqui junto com a
composição de Daniela Mercury em parceria com Caetano Veloso,
quando antes já sugeriu que “é proibido proibir”, a canção
“Proibido o Carnaval”.
Pierrô
ferido | João Gomes
O
tempo pisado
é
ínfimo, funciona-se
a
emoldurar mortais
com
predicados sujeitos
iguais
à dureza estátua.
Visualizado
momento
perdido,
funda adornos
à
carranca,
lava
mármore de outrem,
término
refaz
de
entendimentos
vossa
máscara.
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João
Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de
literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias
impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.