por Juliana Berlim__
Zerstörung einer Illusion,’ 1977 © Karin Mack / SAMMLUNG VERBUND. |
O
brasileiro médio acorda, escova os dentes, toma café, sabe de uma
tragédia e vai trabalhar. Mas se o brasileiro médio fosse uma
brasileira média e tomasse conhecimento de uma tragédia logo de
manhã, é bem provável que engolisse seu café a frio: desde o
começo de 2019, não houve um único dia sem a notícia de uma morte
de mulher.
Os
cuidados afetivos do país caem sobre o regaço feminino: a
brasileira média cuida do bem-estar emocional dos filhos, pais,
maridos, empregados, vizinhos, todos a seu redor, ignorando
constantemente a si mesma. No instante mesmo em que decide se dirigir
algum tipo de atenção, por exemplo, pedindo o divórcio a um
cretino abusivo, este mesmo indivíduo, porque a maior parte dos
feminicídios é cometido pelos companheiros das mulheres
assassinadas, acha-se no direito de reivindicar o maior bem desta
mulher: a vida, que, se bem observado, pertenceu durante muito tempo
a este homem, ainda que ele não reconheça.
A
brasileira média que lê uma notícia pela manhã pôde, em todos os
dias de 2019, se deparar com alguma notícia em que uma mulher foi
morta por amor, ciúmes, paixão - nunca por despeito, ressentimento,
egoísmo. O verbo "assassinar" é pouco usado: um homem em
legítima defesa de seu ego ferido é tudo, menos um matador frio e
calculista. O que me faz lembrar a notícia de hoje pela manhã: o
marido, contrariado pelo fato de sua ex- mulher ter continuado sua
vida depois do divórcio, premeditou com frieza assassina-la com
vinte e duas facadas, a quantidade de meses em que ficaram afastados.
A cada estocada, ele se recordava do "não" ouvido depois
de quinze anos de casamento. Enquanto perfurava o corpo da mãe de
seus dois filhos, o criminoso teve como preocupação fazer incisões
em todas as partes possíveis do corpo dela, porque o TOC não o
deixava agir diferente. A brasileira média, que mal consegue
mastigar a esta altura, se dá conta que o feminicida só pode ser
apanhado por causa desta doença: a meio caminho, ele precisou voltar
e limpar a faca, antes de continuar a leva-la consigo.
Percebem?
Ele precisou pegar um pano de prato na gaveta da cozinha de sua
antiga casa para limpar o instrumento com que matara sua ex-mulher.
Notaram? Ele precisou limpar o sangue da faca. Voltar e limpar a faca
de forma delicada, precisa. A brasileira média agora não consegue
continuar a tomar seu café porque não consegue se desembaraçar
deste detalhe mórbido.
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Juliana
Belim é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio
Pedro II. Conduz no mesmo colégio, o projeto de iniciação
científica Neuromancers, de leitura e pesquisa sobre romances de
ficção científica, bem como faz parte do corpo docente da
pós-graduação Lato Sensu Ererebá – Educação Étnico-Raciais
no Ensino Básico. Participou de três edições da FLUP – Festa
Literária das Periferias, com a publicação de quatro contos no
total.