Um viva a toda forma de ser amor

por João Gomes___

Obra de Leonilson
Nunca me senti tão lembrado, a contragosto dos héteros, por ser o que sou. Junho é o mês LGBTQ, essa sigla que só cresce, arrastando multidões e adere quase tudo pela diversidade em si. Nunca também fui à Paradas, metrópoles, saunas e cinemas pornô. Mas não é por isso que desejo lembrar nossas conquistas, mas há quem ache que uma Parada da Diversidade do Orgulho LGBTQ é apenas um Carnaval fora de época, um golden shower em becos ou mesmo que cirurgia de vasectomia é a causa de ser homossexual.

Não haveria necessidade de uma sigla se as pessoas não gostassem tanto do rótulo, do estar identificado e agrupado para lutar por direitos óbvios. Com a modernidade, depois da Revolução Sexual, não deveríamos estar batendo nisso. Mas como o óbvio é ululante, como sugere Nelson Rodrigues, persistimos em garantir nosso espaço a um preço caro às vezes. Médicos aclamados por sua atuação, como Drauzio Varella, pesquisador do tema HIV/Aids, atenta para a questão biológica citando inclusive a homossexualidade entre animais. Até o Papa Francisco pede que tudo isso seja esclarecido no julgamento final e que não cabe a ninguém julgar no mesmo plano, todos merecem respeito. Mas há quem acuse que toda a cúria é homossexual, as freiras são bissexuais ou lésbicas e tudo é coberto pela manta divina.

Custa pensar como seria se não houvesse esse embate, essa troca de forças, de olhares, de repressões e ataques homofóbicos. É um salve-se quem puder, só deixe que seus amigos saibam, não dê a entender nada para não morrer. Mas tudo é uma questão cultural, do modo de agir e pensar, e biológica do modo natural de desejar. Negar a si mesmo é algo religioso, por isso há os curiosos, os ativos na homossexualidade e negadores da passividade, donos de uma meta corporativa de homofobia que os encubra. Há um pensamento bem verdadeiro que se encaixa a isso: você pode ser gay e não ser homossexual, e homossexual sem ser gay.


Obra de Darcy Penteado
Quanto mais se reprime, maior a incidência de saídas do armário. Porém hoje nada disso mais importa, beijo gay na novela é coisa do passado. Caminhar de mãos dadas e se beijar em público ainda é tido como pornografia que alicia e incentiva crianças que presencia diariamente o feminicídio. A cultura da diversidade sempre terá perseguidores, diferente da do estupro que tem apoiadores e é patrocinada pelo patriarcado. A diversidade é defendida pelos Direitos Humanos, que busca a proteção e a autonomia de existir de forma digna. A do estupro proíbe o aborto, diz se importar com o feto e lhe nega os direitos quando nasce e cresce.

Temos muito a nos orgulhar por ser publicamente o que uma parcela é em segredo. Não é como ser tuberculoso e crer que todos estão só por tossir, é que como humanos nos desejamos e somos castrados socialmente. É poder ser fã de Madonna sem ser gay, ser fisicamente forte e emocionalmente sensível. Conhecer a si pode ser o segredo da felicidade que permite se orgulhar a ponto de provocar inveja. O problema é que podemos saber demais, identificar quase sem erro e com igual preconceito vestígios de comportamentos que nos reduzem e separam. Tudo é mais complexo do que se imagina.

Para incentivar e dar continuidade ao debate, por estarmos no mês LGBTQ, sugiro alguns títulos da Netflix tidos como um presente à irmandade. Recentemente assisti “Elisa y Marcela”, duas mulheres que se juntam no início do século passado, uma delas tentando se passar por um homem e se casando para ainda assim ser descobertas e presas. Há também “Girl”, que narra o processo de transição de gênero de um aspirante a bailarino com apoio do pai e, ainda assim, muito sofrimento em cima da autopercepção e lentidão de todo o processo hormonal. Há verdadeiras entregas na realização de ambas narrativas. A série "Crônicas de San Francisco" também narra o tema para quem prefere produções cinematográficas de longa duração.




Eu ao escrever este texto visto uma camisa com os dizeres: Lute como uma garota, o que me desperta às vezes o choro, mas não a vergonha de ter sido e com um orgulho e enlevo de pensamento maior que qualquer estatística de violência. Maior que qualquer incentivo de presidente tosco representante de um povo iludido e orgulhoso, tanto quanto o outro lado mas por inversão e recalque, defensores da família e da hipocrisia. Há muitos atalhos para sair disso, e o principal deles é o conhecimento, maior inimigo deste desgoverno atual, sempre anterior à modernidade.

Que a arte existe porque a vida não basta já dizia Ferreira Gullar. Todo esse acervo LGBTQ existe para nos colocarmos no lugar do outro, da diversidade ir em encontro com uma inclusão já existente. Negada em nome de um obscurantismo capaz de fazer uma chacina numa boate gay, mesmo tendo provas de o assassino ser homossexual também. Guerras sempre existirão, entre os sexos, entre os da mesma condição sexual, mas o que incomoda é esse decidir pela vida do outro, como se tomar partido e satisfação daquilo que o outro faz com seu corpo fosse de nosso interesse. Como não me rendo, prefiro viver a sonhar, e ser mesmo o destemido que se traveste, que provoca a dúvida e deixa a resposta por conta própria do tempo de assimilação de cada um. Um viva a toda forma de ser amor.




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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.