por
Fernando de Souza__
APRENDENDO A VIVER COM A SOLIDÃO DO MORRER
APRENDENDO A VIVER COM A SOLIDÃO DO MORRER
morte,
não sejas orgulhosa
apesar
de alguns te chamarem terrível e poderosa
tal
não serás
aqueles
que pensas teres deixado para trás
não
morrem, pobre morte,
nem
a mim podes levar
após
um breve sono, acordamos eternamente
e
a morte deixará de existir,
morte,
tu também morrerás
(John
Donne)
Emma Thompson |
Ao
assistir a Wit, uma lição de vida , telefilme da HBO (Mike Nichols, 2001), somos apresentados a Vivian, interpretada por Emma Thompson, uma PhD especialista em
literatura inglesa. Por sua vez, ela nos apresenta John Donne,
escritor britânico do séc. XVI, cuja poesia metafísica sobre o
morrer se tornou, para ela, leitmotiv
de sua vida. Uma mulher de
personalidade “forte”, emocionalmente “árida”, acostumada a
estar no controle das coisas. Distinto do estereótipo comumente
esperado de uma professora de literatura. Mas a neoplasia ovariana,
já em metástase, assim como qualquer outra patologia em caráter
definitivo, não conhece fronteiras entre força e fraqueza, “aridez”
e “umidade” ou quaisquer outras dicotomias tão humanas...
É
necessário considerar, inicialmente, as características
socioculturais anglo-saxônicas para compreender a “frieza”, o
pragmatismo e a objetividade das interrelações pessoais,
especialmente no contexto dos profissionais de saúde que pontuam o
filme, e as reflexões que dele tiramos. Contextualizar estas
relações para nossa realidade sociocultural é condição sine
qua non para evitarmos
interpretações pouco indulgentes para com a “dureza” dos
profissionais médicos que surgem na tela.
Entretanto,
há muitos paralelos possíveis na classe médica, lá e cá, que
luta incansavelmente pela manutenção da vida “a qualquer preço”.
Este é um ponto-chave a ser considerado para nossa reflexão:
tratando-se de uma patologia em fase terminal, no caso de Vivian, é
condizente com o conceito de dignidade humana (pensemos nos termos da
Bioética) afetar o corpo/psique, única e exclusivamente para a
manutenção do processo fisiológico vital? Não seria a morte e o
morrer parte deste processo? Então porque não respeitar estas
nuances e oferecer condições “ortonásicas” para que tal
ocorra?
O
que assistimos em Wit,
contudo, é a despersonalização do indivíduo em situação de
paciente, sua desumanização no atendimento, o estabelecimento de
relações de poder perante sua situação de fragilidade – física
e psicológica – que remete ao conceito e aos aspectos de
instituição total propostos por Goffman. A título de exemplo,
Vivian (sim, vamos combinar: a paciente tem um nome!) foi submetida a
um exame ginecológico no qual a enfermeira inicialmente havia se
ausentado da sala; o médico saiu e foi procurá-la, deixando Vivian
na posição ginecológica do exame. Ou seja, física e
simbolicamente exposta. E, para completar o “teatro do absurdo”
da situação, o médico-residente havia sido seu aluno...
constrangimento para ambas as partes!
Se
considerarmos esta situação, aliada a outras – representadas no
filme - relacionadas a um período de internamento, por vezes
prolongado, que conduzem ao isolamento e à solidão (social e
existencial), e no qual a pessoa internada realiza uma quase sempre
forçada “aprendizagem do sofrimento”, que inclui o luto, o
reconhecimento do “engodo” primevo – e renitente – da
onipotência narcísica; podemos afirmar que o apoio psicológico é
extremamente relevante, tanto para o(a) paciente como para seus
familiares e amigos, e mesmo para os profissionais que o(a) atende.
Neste
sentido, um plano de atuação do(a) psicólogo(a) hospitalar
incluiria um processo de conscientização e sensibilização para
com os três vértices deste triângulo relacional no que diz
respeito a uma psico-educação do(s) significado(s) da morte e do
morrer, considerando a escuta diferenciada dos conteúdos simbólicos,
culturais, espirituais de cada um dos envolvidos, para que houvesse
uma espécie de “alinhamento” de perspectivas e expectativas
diante do processo de internamento e seus possíveis desenlaces.
Acima de tudo, levando em consideração o ponto de vista do(a) maior
interessado(a) desta “trama”, o(a) paciente.
Após
este “alinhamento”, cuidados paliativos devem ser
disponibilizados para a necessária “gestão da dor”. Afinal,
morte e dor, do ponto de vista lacaniano, encontram-se no Real,
inacessíveis ao registro Simbólico... talvez por isso mesmo, há
uma intraduzível “simplicidade” nelas. Nenhuma erudição da
“Wit Vivian” é capaz de mediar sua experiência perante este
Real. Apenas a inesperada visita de sua ex-professora, não mais no
papel de sábia, mas no (igualmente inesperado) exercício de uma
função materna, permite este alento. Da dor. Do medo. Da morte.
Começamos
esta reflexão com poesia, é pertinente que a concluamos com esta.
Do metafísico inglês John Donne ao modernista brasileiro Cassiano
Ricardo, embora a experiência per si
da morte e do morrer sejam intraduzíveis, a condição existencial
da avassaladora fragilidade humana perante estes fatos (da vida!)
permitem a eclosão de um universo simbólico que talvez apenas a
Arte o Amor sejam capazes de tangenciar o registro do Real:
Diante
de coisa tão doida
Conservemo-nos
serenos
Cada
minuto da vida
Nunca
é mais, é sempre menos
Ser
é apenas uma face
Do
não ser, e não do ser
Desde
o instante em que se nasce
Já
se começa a morrer.
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Fernando
Souza é psicólogo em formação, mestre em Letras e bacharel em
Comunicação pela UFPE. Publicou artigos acadêmicos em Psicologia,
concorreu e recebeu alguns prêmios de poesia entre 1991 e 1995.