por João Gomes__
Política tem e deve estar em tudo. Mas quando chega ao desrespeito à morte de alguém, isso já é fascismo, chega à hipocrisia e ao poder virtual que foi dado ao ser humano por meio da interação para o mal. Será que não é possível conseguir separar uma coisa da outra? No caso de quem falamos, talvez não, porque seu estilo de escrita não tem misericórdia nem meia palavra e o que cabe no seu verbo é a sinceridade e, acima de tudo, a honestidade. Para quem duvida da real causa de sua morte, critica o excesso de tatuagens em sua pele, seu posicionamento político e inveja seu talento, que descanse em paz, já que não sabem desejar isto a quem morre tão prematuramente. O roteiro da clareza, guiado com humor, a narrativa de seus romances caóticos, os seus poemas tão não românticos estarão sempre à espreita de quem busca a evolução. E é isso o que realmente importa, a cafonice não.
Fernanda Young |
Refiro-me à Fernanda Young, escritora, atriz, roteirista e, antes de tudo, uma provocadora que morreu aos 49 anos neste 25 de agosto. Seu nome carregava toda essa possibilidade de ser jovem e madura, bem humorada e pensante. Recordo a primeira vez que tomei emprestado um romance seu para conhecer sua literatura, e tudo muito bem antes de saber que Os Normais era escrito por ela em parceria com seu marido, Alexandre Machado. Acredito que eu tenha lido primeiro Vergonha dos pés e só depois As pessoas dos livros e dali já tinha tomado o gosto pela pessoa, mesmo sem conhecê-la tão fortemente como é possível hoje por meio de vídeos. É que em sua escrita sempre na primeira pessoa estava sempre a Fernanda Young capaz de analisar e contar uma história contemporânea de uma maneira tão surpreendente, visceral e perspicaz. E o melhor de tudo, sem tradução, em nossa língua.
Na abertura do seu romance Vergonha dos pés lemos: “Quando o Homem pisa o chão, da maneira que o faz, já diz quem é.” Como não continuar com uma abertura dessa? Relendo uma resenha que escrevi em 2012, pude relembrar do enredo. Ana é uma jovem que passa os dias matando aula do curso de Letras, e mata porque não suporta mais ouvir um professor falar em significado e significante, é também uma escritora de criatividade imensa, mas não tem uma só linha escrita. Ela escreve, mas mentalmente. Cria personagens perfeitos e passa longas horas pensando bobagens, e numa festa da virada conhece Jaime, com quem mantém um relacionamento. Tudo isso lembra muito a biografia da autora, que cursou sem concluir Letras, Jornalismo, Rádio & Televisão e também Artes Plásticas, mas publicou 14 livros, escreveu inúmeros roteiros, apresentou programas de entrevistas, contracenou e alcançou o tão sonhado espaço na mídia.
Apesar de seu currículo tão extenso, Fernanda preferia se dizer escritora, não se considerava poeta e tinha dislexia. Sempre atenta, em um de seus poemas do livro Dores do amor romântico escreve: “Então há o horror, e por fim, que é começo, o amor. / Como é engraçada a vida, posto que é só isso.” Morreu em decorrência de uma crise de asma seguida de parada cardíaca quando estava no sítio da família em Gonçalves, interior de Minas Gerais. Estrearia, ao lado de Fernanda Nobre em setembro, uma peça teatral com temática homoafetiva, Ainda nada de novo, em São Paulo. Em sua última coluna no Jornal O Globo, comenta o tema que mais lhe irritava, a cafonice, inclusive a do anti-presidente do Brasil, de sua família e de seus apoiadores. “A cafonice detesta a arte, pois não quer ter que entender nada. Odeia o diferente, pois não tem um pingo de originalidade em suas veias. Segura de si, acha que a psicologia não tem necessidade e que desculpa não se pede. Fala o que pensa, principalmente quando não pensa.”
Fernanda Young |
E é sobre pedir desculpas que me fez iniciar este texto, fora a dor de termos perdido alguém como Young, quando sabemos de seu valor. Em entrevista exibida no Fantástico, sua amiga, a atriz Marisa Orth inicia seu depoimento de despedida exclamando um entoante “Louvem-na, louvem-na” e os cafonas não se seguraram e começaram o ataque nos comentários do vídeo no YouTube desrespeitando a dor do outro num protagonismo nada aproveitável. Isto se assemelha ao pedido de desculpa da Procuradora da Lava Jato, Jerusa Viecili, pela sua fala irônica com outros procuradores após a morte da ex-primeira-dama Marisa Letícia em resposta ao pedido de Lula para ir ao velório de seus familiares. Só atualizando, o ex-presidente perdeu a esposa, o irmão e o neto no período de prisão política em Curitiba. O governador do Maranhão, Flávio Dino, também se manifestou: “Espero que a reflexão noturna traga senso de humanidade aos agressores. Ainda há tempo.” Tempo sempre há, mas sobretudo para dar espaço a vergonha nacional. O Brasil também pediu desculpas ao presidente da França, Emmanuel Macron, pelo desrespeito do anti-presidente a também primeira-dama Brigitte Macron, professora de 66 anos.
A questão que está em jogo: os cafonas têm, como saiu na primeira página do jornal norte-americano The New York Times, o líder mais fraco e acéfalo de todos no poder, e se sentem representados. Devemos mesmo louvar Fernanda Young, porque a vida deve ser realmente louvada, aplaudida e independente para qual emissora se presta serviço, se ela irá lucrar mais com sua morte, se a Playboy que ela posou nua em 2009 vai ficar mais cara para os colecionadores e etc. Acredito que seu maior desejo vai acontecer: seus livros serão mais lidos, e a pessoa que estava por trás de Os normais e outros sucessos da TV brasileira será uma pessoa só, conhecida por todos. Infelizmente é a morte que possibilita isso, essa procura tão urgente para quem deseja pedir perdão por tudo que emana, às vezes desinformado, outras tantas desinteressado, mas sobretudo desumanizado. Descansem em paz Fernanda, Vavá, dona Marisa e Arthur, neto de 7 anos do ex-presidente que também sofreu agressões no momento do luto. E louvemos a vida, porque somos o que nela se contém.
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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.