por
Rebeca Gadelha__
Artista:
kirisawa Juuzou
Isto
é o que sei (e não é muito):
Os bisavós teriam fugido para casar, bisavó teria morrido poucos anos depois, “doença” era tudo que vovô dizia; bisavô a seguiu pouco depois, o corpo precipitando-se de encontro à via férrea — se o fim foi proposital ou acidental, isto não o sei, vovô também nunca disse e só agora começo a desconfiar da veracidade desses fatos. Segundo vovô seus pais haviam fugido da Europa para o Brasil, pois os pais de seus pais eram contra o casamento, o que o avô (homem do qual eu nunca soube o nome) de meu avô fazia no Brasil na época da morte de seu filho eu nunca soube, também nunca questionei até este momento. O fato é que meu avô acabou indo morar com o pai de seu pai, um homem duro do qual ele nunca falava o nome. Falava da fome, das surras, das picadas de escorpiões, mas nunca o nome dele. Seus irmãos foram todos desbaratados em uma geografia incerta: alguns ficaram com os tios, outros com os avós maternos e somente um irmão — que tinha exatamente o mesmo nome do pai — juntou-se a ele na infelicidade de ser criado pelo avô paterno. Aos 15 anos meu avô e seu irmão falsificaram documentos e entraram para as forças armadas, era a década de 1940, num estado abandonado por deus e pelo estado como o Ceará, as opções eram poucas: mendicância, crime, tentar a sorte em Fortaleza e, se falhar, cair nas duas primeiras alternativas. Ouvi isso direta ou indiretamente de alguns dos poucos colegas militares que conheci, também ouvi dos filhos de outros, que encontrei por aí: “naquela época era a alternativa mais honrada para não morrer de fome”. Honrada ou não, foi a alternativa que meu avô escolheu, juntou-se à Marinha ainda antes de 1950 e os frágeis laços que tinha com sua família foram se desfazendo. Quando estava no mar — ou antes de viagens que sabia ser longas — depositava todo o ordenado para a esposa e o confiava ao bom senso da mulher, sem nunca saber se realmente voltaria. Já quando nasci, na década de 1990, só lembro de um cartão postal de minha tia-avó, enviado dos Estados Unidos, uma casa coberta de neve em uma rua qualquer, palavras de saudade que não esperavam resposta. Nunca soube muito da família de vovô: havia dois primos padres, um sobrinho era pistoleiro, a irmã perdera o útero para um câncer, outra estava nos EUA (talvez até fosse esta a do câncer), mas vovô nunca realmente se explicava, de forma que ele próprio parecia mais uma lacuna do que homem.
Os bisavós teriam fugido para casar, bisavó teria morrido poucos anos depois, “doença” era tudo que vovô dizia; bisavô a seguiu pouco depois, o corpo precipitando-se de encontro à via férrea — se o fim foi proposital ou acidental, isto não o sei, vovô também nunca disse e só agora começo a desconfiar da veracidade desses fatos. Segundo vovô seus pais haviam fugido da Europa para o Brasil, pois os pais de seus pais eram contra o casamento, o que o avô (homem do qual eu nunca soube o nome) de meu avô fazia no Brasil na época da morte de seu filho eu nunca soube, também nunca questionei até este momento. O fato é que meu avô acabou indo morar com o pai de seu pai, um homem duro do qual ele nunca falava o nome. Falava da fome, das surras, das picadas de escorpiões, mas nunca o nome dele. Seus irmãos foram todos desbaratados em uma geografia incerta: alguns ficaram com os tios, outros com os avós maternos e somente um irmão — que tinha exatamente o mesmo nome do pai — juntou-se a ele na infelicidade de ser criado pelo avô paterno. Aos 15 anos meu avô e seu irmão falsificaram documentos e entraram para as forças armadas, era a década de 1940, num estado abandonado por deus e pelo estado como o Ceará, as opções eram poucas: mendicância, crime, tentar a sorte em Fortaleza e, se falhar, cair nas duas primeiras alternativas. Ouvi isso direta ou indiretamente de alguns dos poucos colegas militares que conheci, também ouvi dos filhos de outros, que encontrei por aí: “naquela época era a alternativa mais honrada para não morrer de fome”. Honrada ou não, foi a alternativa que meu avô escolheu, juntou-se à Marinha ainda antes de 1950 e os frágeis laços que tinha com sua família foram se desfazendo. Quando estava no mar — ou antes de viagens que sabia ser longas — depositava todo o ordenado para a esposa e o confiava ao bom senso da mulher, sem nunca saber se realmente voltaria. Já quando nasci, na década de 1990, só lembro de um cartão postal de minha tia-avó, enviado dos Estados Unidos, uma casa coberta de neve em uma rua qualquer, palavras de saudade que não esperavam resposta. Nunca soube muito da família de vovô: havia dois primos padres, um sobrinho era pistoleiro, a irmã perdera o útero para um câncer, outra estava nos EUA (talvez até fosse esta a do câncer), mas vovô nunca realmente se explicava, de forma que ele próprio parecia mais uma lacuna do que homem.
Morreu
e hoje não sei nada sobre ele. Sei que me recitava poesia e falava
sobre universos alternativos e radiação, falava sobre psicologia e
mediunidade (era espírita, creio eu), suas únicas palavras sobre a
ditadura eram sempre “entrava gente para nunca mais sair”. me
pergunto se teria adiantado inquirir, investigar esses fatos de
verdades dilaceradas que vovô sobre si, creio que não. Vovô sabia
guardar segredos.
_____________________
Rebeca
Gadelha
nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na companhia
dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista digital, é
apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem medo de
avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é fígado. Foi
responsável pela diagramação, ilustrações e concepção visual
em Balbúrdia, participa da coletânea Paginário, publicada pela
Editora Aliás. Atualmente escreve para as revistas do Medium Ensaios
sobre a Loucura e Fale com Elas sob o pseudônimo de Jaded.