por Lizzy
Ripardo___
“Liberdade
é não ter medo.” –
Nina Simone.
Fotografia: Fábio Teixera (AP) |
Ancestrais.
Memória. História.
Com
orgulho os reverencio.
Trago
marcas de nossa história, negra, escravizada. Privada da liberdade
de viver. Tinha de sobreviver. Reverbera em minha alma os choros,
lamentos das labutas e chibatadas, dos açoites e mortes. Todas essas
visões não me são vagas. Consigo ver, sentir em minha pele, na
minha cor, os detalhes e consequências de todas as marcas.
Notícia
trágica repercute na mídia nacional. Eu abstraio as seguintes
palavras: Família, domingo, Rio de Janeiro, passeio, carro, rua
cheia, oitenta tiros, correria, sangue, morte, terror. Estática e
por frações de segundo paro de respirar. Ouço uma voz vindo de
longe. Minha mãe.
-
Filha, foi no morro? Facção?
Eu
volto a respirar fundo, profundo.
Minha
mãe com olhos marejados, engolindo seco, com ar de terror em sua
face me diz: Filha,
oitenta? Oitenta tiros?
Não respondo, ela sai de frente da TV. Eu permaneço, diante da cena
em silêncio.
A
tristeza me invade. O nojo me queima. Com meu choro eu engasgo. E o
medo... Oitenta tiros, cravaram em minha mente, em minha alma. Saio
diante da TV, ainda em choque, sento no chão da calçada de frente
de casa, vejo o movimento. Favela, periferia. Os meninos soltam pipa,
as meninas brincam de esconde-esconde. O bar aberto, com os mesmos
rostos. Acho que ninguém ainda viu a notícia. Notícia da guerra.
Guerra civil. Aqui a pátria amada, mata os seus. O país de todas as
cores e santos, tem alvo - preto.
Noticiário
noturno atualiza as informações.
-
Estima-se que mais de oitenta tiros atingiram o veículo. O senhor
Evaldo dos Santos Rosa veio a óbito no local. Seguem internados o
seu sogro que também estava no veículo e o catador de recicláveis
que tentou ajudar.
Fotografia : Mauro Pimentel (AFP) |
Os
detentores da justiça, do poder em proteger, confundem furadeira
com pistola, guarda-chuva com metralhadora. Mas confundir um branco
com negro, não!
Os
dias passam o terror ainda me queima, passo nas avenidas e me sinto
alvo. As notícias se atualizam. O laudo confirma que oitenta e três
tiros atingiram o veículo, foram mais de duzentos
– duzentos tiros efetuados.
Evaldo
dos Santos Rosa, foi assassinado. Morreu indo à um chá de
bebê, no ataque do exército brasileiro contra o seu veículo, que
foi atingido por oitenta e três balas. Os tiros, todos eles,
disparados por soldados.
O
Ministro da Justiça: Episódio lamentável. O Presidente: Incidente.
O delegado que assumiu o caso: Os militares fuzilaram um ‘cidadão
de bem’ por
engano.
Lamentável
? Incidente ? Engano ?
Meu
amado país cresceu à base de sangue negro. Somos exterminados à
anos. Oitenta e três tiros não é engano, é assassinato!
É um crime contra a humanidade. Nós negros, brasileiros, não
queremos vingança. Queremos o que nos é garantido na Constituição.
Queremos justiça, igualdade. Respeito.
Resistência
é o sobrenome de todo povo negro que nasci aqui, Brasil. Ecoa em
minha mente, em meu espírito, os pedidos por liberdade dos meus
ancestrais. Sou livre, sou alvo. Sou a razão, o resultado de anos de
luta, labuta e enquanto eu viver continuarei resistindo.
Escreveremos, cantaremos e gritaremos se preciso for, pois não há
quem possa nos calar. Resistência reverbera em nosso sangue –
preto.
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Liliana
Ripardo, nascida no início dos anos noventa, na cidade de
Fortaleza/CE, filha mais nova de uma família humilde, moradora de
periferia, orgulha-se de quem se tornou. Crescida, decidiu
atrevidamente aprender a Língua Brasileira dos Sinais e a paixão
pela LIBRAS virou profissão. Define-se como uma menina-mulher que
tem na leitura um amor antigo. Escrever é seu abrigo – e aliado –
em meio ao caos que lhe permeia. Adora tomar uma boa xícara de café
acompanhada de “dois dedos de prosa”. Permanece em mudança, pois
acredita na evolução de seu ser.