O que escrevo é honesto e puro - Entrevista com Raimundo de Moraes


por João Gomes___ 

Raimundo de Moraes
Raimundo, sua trajetória carrega muito da performatividade artística que acontece no Recife. Escrever a partir dessa faceta cria na sua escrita algum estilo que o torna distinto de um poeta interiorano? E em que ano chegou Raimundo de Moraes no Recife?

Se o mar e o mangue desenharam o contorno do Recife, eu cheguei aqui talvez por intromissão e para destoar um pouco da paisagem, rsrs. Gosto dessa coisa das simultaneidades, de ser de um lugar e ao mesmo tempo não pertencer a lugar nenhum. A modernidade nos colocou todos num mesmo caldeirão cultural. Dessa forma, não vejo o litoral ou o interior como sendo um rótulo, uma maneira de me inserir na geografia de algum estilo. Ter nascido e crescido numa metrópole acrescentou (e acrescenta) algo ao mix de coisas que escrevo. Mas existem muitos interioranos mais urbanos e hightechs do que eu.
Não sei se o meu trabalho carrega a tal performatividade artística que você menciona. A tradição poética pernambucana de flertar com o teatro e a música é muito antiga, creio que antecede até mesmo a musicalidade dos poemas de Ascenso Ferreira. Talvez eu tenha influência dos recitadores de rua, como os companheiros que fizeram parte do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco (década de 1980) e de todo o cenário teatral do Recife daquele período, onde eu transitava, nos bastidores e nas plateias.

Como surgiram seus heterônimos e quando se deu conta que precisava mostrá-los como independentes? A poesia é chamada de marginal em qual sentido especificamente? Underground, apesar do estrangeirismo, classifica melhor seu trabalho ou não importa classificação?

Os críticos designam heteronímia a metamorfose de estilos literários que um mesmo autor desenvolve em seus textos, como se convivessem dentro dele outros autores. Fernando Pessoa é o exemplo mais recorrente sobre o uso de heterônimos (mas ele não foi o primeiro). Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários, diz que a heteronímia se aproxima da dramaturgia. Acho que por isso prefiro dizer que tenho personagens que me acompanham e tentam viver além do meu inconsciente (ou da minha capacidade de sentir) utilizando a literatura como expressão. Aymmar Rodriguéz nasceu na década de 1980 e o escracho e a paródia são muito frequentes em sua poesia. É um poeta de navalha em punho e de uma objetividade e síntese que fazem contraponto à outra personagem, a artista plástica, poeta e bruxa wicca Semíramis. Alma Henning, a última personagem que surgiu, já não tem nada a ver com os dois já citados, nem no tempo cronológico (pois morreu ou desapareceu na década de 1960) nem do idioma (pois se expressa em inglês americano). Os três escrevem e veem o mundo de formas diferentes. Então acho que eles meio que seguiram seus próprios caminhos, não sei direito como explicar isso. Quanto à poesia marginal, existem tantas designações para classificá-la: é marginal porque está à margem das oportunidades de divulgação e reconhecimento? Ou é marginal porque ousa abordar temas que a maioria das pessoas prefere não questionar? Como estou fora dos grandes círculos literários e nem sempre meus temas são antissépticos e comuns, pode-se dizer que nasci poeta marginal e provavelmente morrerei marginal.

Um de seus poemas em livro de apuro estético elevadíssimo e que foi lançado com incentivo do FUNCULTURA lemos: “Esse jogo de armar a Poesia / (...) Não quero mais, vida minha / Só a força dos meus amantes.” Você impõe a si alguma censura ao inscrever trabalhos seus nos editais do estado de PE? E aproveitando, como você entende o pornográfico e o erótico na literatura?

Tenho dois livros que puderam ser publicados graças ao Funcultura (incentivo dado pela Secretaria de Cultura do Governo de Pernambuco): Tríade (onde aparecem Aymmar e Semíramis) e Jesus Cristo, mon amour. Os dois possuem histórias distintas. O Tríade reúne poemas da juventude (eu nunca me preocupei em lançar livros de minha autoria; coisa de baixa autoestima). Então Cida Pedrosa e Sennor Ramos pegaram essa colcha de retalhos (Tríade) e inscreveram no Funcultura. Sinceramente achei que o conteúdo reunido seria vetado pela comissão avaliadora, apesar de muitos poemas terem sido premiados em concursos literários. O livro finalmente foi publicado em 2010. No dia do lançamento, o poeta e ator Biagio Pecorelli fez uma performance à beira do Capibaribe (a gerência do Paço Alfândega, onde ficava a Livraria Cultura, proibiu que Biagio se apresentasse lá). Em relação ao Jesus Cristo, mon amour, só na segunda tentativa ele foi aceito. Quem insistiu foi o produtor cultural Alexandre Melo. E fiquei muito feliz com isso, pois eu nunca teria dinheiro para publicar um livro com tal acabamento gráfico.

Lançamento do livro Jesus Cristo Mon Amour

Não imponho autocensura para mim, ou por medos ou para me adequar a editais. Sei que nenhum diretor de escola me convidaria para falar com estudantes sobre meus livros, e que talvez alguns curadores de eventos literários jamais me chamariam para participar de alguma palestra ou projeto. Mas na vida existem sarjetas, palavras chulas, crimes horrorosos e personagens bizarros. O que escrevo é honesto e puro, por mais estranho que isso possa parecer. Impor uma autocensura no que escrevo seria autossabotagem e hipocrisia.
Sobre o sexo nosso de cada dia: o escritor e cineasta francês Robbe-Grillet disse uma vez que pornografia é o erotismo dos outros. O pornográfico está associado ao explícito e ao vulgar, e o erotismo ao artístico e ao refinado. Mas isso é tão subjetivo, não é? Eu acho que os objetos de desejo vão mudando à medida como vão mudando o modo de expressão da sexualidade no passar das eras. O que era comum antes (como por exemplo as procissões do deus Príapo na Roma Antiga) pode parecer obsceno nos dias de hoje. Quem vai fazer procissão nas ruas carregando enormes bilolas em ereção?(apesar de que ainda hoje no Japão existe uma festa do pênis, relacionada à fertilidade). É tão tênue a linha entre erotismo e pornografia. O Kama Sutra era visto (e ainda é, para algumas pessoas) como pornográfico. Os 120 dias de Sodoma, de Sade, é uma obra tão forte que faz parecer o 50 tons de cinza uma cartilha de jardim da infância. Podemos dizer que o livro de Sade é pornográfico? E como seriam vistas em meados do século passado algumas letras de música de sexo explícito que são cantadas atualmente por adolescentes e até crianças? Não ouso dizer o que é erótico ou que o que é pornô. Que cada um escolha o seu cardápio (ou fique em jejum) e seja feliz do jeito que achar melhor.

Seu livro Tríade compõe sumariamente dois heterônimos, Aymmar Rodriguéz e Semíramis, e você próprio. Já em Coesia, descobrimos Alma Henning com poemas em língua inglesa e traduzidos por Raimundo, que assina também como organizador. As diferenças de estilos são mesmo perceptíveis. A poesia que lhe vem é mesmo esquizofrênica e de autoexílio? E o poeta homônimo é um eterno editor do próprio trabalho?

A literatura foi um modo que meu corpo e minha alma optaram para que eu não enlouquecesse de vez. Lembro nitidamente que quando eu tinha cinco anos de idade, minha irmã adolescente perguntou o que eu queria ser quando crescer. Respondi: bailarino. E ela disse: bailarino não. Vão cortar o teu piupiu. Aquilo foi tão chocante para mim, e é lógico, como uma criança iria entender a expressão da beleza através de uma mutilação sanguinária? Depois, acho que aos sete, oito anos, falei para minha mãe que queria ser pianista. Ela respondeu: na nossa família não existe ninguém com talento musical. Foi outra frustação. Então, como cresci cercado de livros, revistas, gibis – meu avô paterno era representante no Norte/Nordeste da extinta Editora Vecchi, muito famosa na época – e via meu pai e meus irmãos adolescentes sempre lendo, creio que o bailarino, o pianista e o ator (eu queria também ser ator-mirim) se juntaram e nasceu o poeta. Eu não escolhi deliberadamente a literatura: ela me escolheu, me jogou uma boia para que eu não afundasse com o meu excesso de sensibilidade e vontade de ser livre, sem castrações de todas as formas.
Em relação às perceptíveis diferenças de estilos, citadas por você: o permanente perigo de perder-se na própria loucura ajuda nisso tudo? O que escondem as máscaras e as tantas personas independentes (não só em mim, mas em todos nós) quando interpretamos nossos papéis sociais? Quando eu ganhei o Off-Flip de Literatura um colega jornalista me entrevistou e de repente falou: e se Raimundo de Moraes também fosse um heterônimo? Me surpreendi com a pergunta. Nunca tinha pensado nisso. Já que meus personagens literários são tão diferentes e saem de um mesmo cérebro (o meu) pode ser que esse processo criativo esteja mesmo próximo a uma espécie de dissociação de personalidade. Mas não fico procurando respostas. A tarefa fica para os leitores, os especialistas em literatura (ou em psiquiatria). Talvez surjam interpretações diversas. Ou apenas novas interrogações.

Baba de moço é o olhar sincero e afiado do heterônimo Aymmar Rodriguéz. Jesus Cristo Mon Amour é assinado por Raimundo e tem uma carga temática na mesma força que Teresa em êxtase, poema que venceu o Off-Flip 2008. Escrever a partir do sagrado, com tantos poemas profanos, o torna mais maldito? E como a religião colabora na escrita de uma poesia tão transgressora?

Creio que a humanidade só irá melhorar em termos de convivência e bem-estar social quando o fanatismo religioso acabar e a fraternidade e o respeito se tornarem uma prática cotidiana por questões de ética, e não porque Jesus ou Maomé aconselharam. A maioria das religiões desune e exclui. Todas querem indicar caminhos de salvação e formação de grandes hordas de “eleitos” e “escolhidos”. Respeito a fé de cada um, e no estágio de evolução que estamos, percebo que muita gente necessita ainda acreditar em lendas, fazer promessas, participar de rituais para poder sobreviver, pois a realidade se tornaria insuportável só vendo o lado material. Então quando trago para a poesia questões que são tidas como verdades intocáveis, mas que ao mesmo tempo fedem à podridão e à hipocrisia, a denúncia pode ser vista como escândalo para alguns. Mas eu acho que a arte só se renova através das transgressões e ousadias. Nos meus livros, o sacro e o profano se fundem porque na vida real é assim mesmo. As religiões são inventadas pelos homens e a autopunição e os preconceitos trazem as chamas de um inferno mítico para o nosso cotidiano.

Você integra o grupo de amigos escritores Autoajuda Literária. Poderia contar a importância de se reunir para comentar os escritos recentes e sobre como ocorreu lançar conjuntamente o livro Escrever ficção não é bicho papão? Oficina de escrita literária ajuda mesmo futuros escritores?

O Autoajuda é composto por Cícero Belmar, Cleyton Cabral, Gerusa Leal, Lúcia Moura e por mim. Em 2020 iremos completar dez anos de existência, com reuniões periódicas na casa de Lucia Moura, onde comemos, bebemos, rimos bastante e estudamos literatura – seja através dos nossos textos ou através dos textos de outros autores. Uma vez o escritor e jornalista Ney Anderson convidou a mim, a Belmar, Gerusa e Fernando Farias para participarmos de uma oficina on-line, no seu blog Angústia Criadora, cada um dando seus pitacos de maneira como bem entendesse. A repercussão foi boa e em seguida resolvemos transformar a experiência em livro, convidando para o projeto Cleyton e Lucia. Assim surgiu Escrever ficção não é bicho-papão, um livro impresso e audiobook. O Bicho-papão também marca a criação do selo do Autoajuda Literária, o Edições Geni.

Grupo Autoajuda Literária
Sobre a importância das oficinas literárias, acho que depende da necessidade e das perspectivas de cada pessoa. Antigamente não existiam oficinas literárias. Como se formavam os grandes escritores? Primeiro, pela persistência e pelo autodidatismo. Segundo, porque muitos se reuniam em grupos, para analisarem seus escritos e os escritos dos seus contemporâneos. Virginia Woolf se reuniu com seus amigos artistas e escritores por mais de trinta anos, o chamado Grupo de Bloomsbury; James Joyce tinha o seu grupo quando residia em Trieste; o irlandês William Yeats, em sua juventude e já residindo em Londres, participou de um grupo de poetas chamado Rhymer’s Club; Hemingway frequentou o círculo de Gertrude Stein em Paris, e aqui no Brasil os “exilados mineiros” como Drummond, Fernando Sabino, Hélio Pallegrino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Pedro Nava se encontravam assiduamente quando fixaram residência no Rio. Atualmente, às vezes a oficina literária serve para diminuir a dispersão que geralmente pode afetar o escritor iniciante. Pode lhe ajudar a focar mais naquilo que quer, vencer os obstáculos iniciais. Porém isso não significa que depois ele será famoso e discutido/reconhecido pelos críticos. Sucesso é uma coisa, qualidade é outra. Tem muito escritor medíocre ou mediano que consegue amplo espaço na mídia. Faz um lobby poderoso, um incansável beija-mão. Mas assim como o tempo transforma nossa cara em maracujá seco, esses textos fraquinhos que são aplaudidos agora irão murchar. E virão outras novidades. E mais outras. E mais outras. Sempre foi assim. Só os verdadeiramente talentosos serão lembrados. E olhe lá. Como sabemos, a amnésia faz parte do DNA do Brasil.

Diferente da prosa, como você percebe o lado pessoal, de estilo mesmo, na poesia, e sobretudo a feita por heterônimos? Seus poemas vão para a roda crítica antes de serem lançados em livros ou saem do esconderijo da alma passando por anos de gavetas? Como funciona seu processo de arquivo poético durantes os anos? 

Não tenho “primeiros leitores” em poesia. Geralmente os poemas saem da gaveta (como os poemas que compõem o Tríade) e vão direto para o livro ou para o meio digital. Outros, seguem percursos curiosos, com o Relicário de Nossa Senhora, que perdi numa agenda velha e reencontrei anos depois. Sobre o modus operandi, lembro que quando eu estava em sintonia com as personagens Alma Henning e Semíramis, eu chegava a “ver” suas figuras – Alma a caminhar na beira de um lago, seu olhar triste, sua solidão; via Semíramis com seu corpo esguio, cabelos longos e escuros, rodeada por telas e desenhos. Sentia o que elas sentiam. A dor profunda de Alma, a transcendência de Semíramis. Quanto a Aymmar, é uma coisa mais avassaladora. Não tenho nenhum controle. Ele aparece e some quando quer.

O mercado editorial de publicações independentes em Pernambuco tem melhorado muito depois do surgimento de mostras com rodas de conversa com autores e publicações mais elaboradas. Como você percebe esse avanço, visto que ora lançado por editais e ora por editoras independentes, a sua literatura entrecruza o artesanal do graficamente profissional? E quais são seus próximos projetos?

Já tive vários tipos de experiências: autopublicação, publicação através de incentivo oficial, por convite de editora, através de coletâneas, fanzines, registro em mídias diversas etc. Mesmo assim não estou satisfeito em relação a isso. Gostaria de ter dado mais ênfase a videopoemas e poemas visuais. Também adoraria ver algum grafiteiro utilizar um texto meu como inspiração. Os contos de Pornópolis, por exemplo, dariam uma ótima publicação em HQ. A atriz Hilda Torres, que interpretou o meu Relicário de Nossa Senhora, disse que este poema poderia virar um monólogo por causa da sua carga dramática. O querido Cícero Belmar sugeriu que um outro personagem meu, Dona Cecy (que aparece na antologia Dedo de moça), fosse levado para o teatro.


No lançamento de Coesia


Em alguns contos que escrevi, quando foi utilizado o recurso narrador-câmera, há uma certa fluidez que permite transformá-los em curtas ou serem reinterpretados em vídeo. Enfim. Só são possibilidades. Já passei mais de dez anos afastado da literatura, incluindo o período que morei fora do Brasil. E novamente estou me distanciando. Refiro-me a esse ambiente de ter que se mostrar sempre, circular, adular, batalhar por espaço etc. Tenho livros inéditos de contos, poesia e crônicas, mas não penso em publicá-los. A não ser que alguma editora ou algum coletivo se interesse em publicar. Além do mais, creio que na poesia eu já disse tudo o que queria em Tríade, Baba de moço, Coesia e Jesus Cristo, mon amour. E com exceção das reuniões do Autoajuda, raramente vou a eventos na área de literatura. Também nunca tive um “projeto literário”, dedicando parte da minha vida para isso. Atualmente prefiro ver filmes, ler alguma coisa que ainda me desperte curiosidade e cuidar das minhas plantas na varanda.

*Raimundo de Moraes é escritor, jornalista e publicitário.
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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.