por João Gomes__
Madame
X é Madonna que é o universo
ou
Madonna
é a alma do universo
Gosto
se discute, sobretudo quando o assunto é música. A música chiclete
que somos forçados a ouvir, quer seja por ser tema daquela novela,
por ser a mais pedida na rádio, por tocar na rua como batida que
acompanha o coração, movimenta a pélvis. Uma música sobre a
outra, não há tempo de ouvir com apuro, logo se desgasta, vem outra
ocupar o 1º lugar da posição de mais tocadas nas paradas de todo o
mundo. Música com letra simples, que gera uma dança mais fácil
ainda, odienta por estar nos ouvidos, na vista de quem executa a
coreografia com a ingenuidade programada de um robô. Como ninguém é
obrigado a saber o que tem de fato importância, o que acrescenta
algo à cultura, ao que ficará imortal desde que nasce, a indústria
da música faz de sua existência uma esteira onde mais se vai
e
pouco fica.
Não
pretendo fazer retrospectiva, eleger os melhores disco da metade do
ano, pois não entendo nem acompanho tudo tão de perto assim. É
somente as impressões de um escritor, mais poeta que prosador, que
busca na música inspirações para suas elucubrações poéticas.
Uma obra de arte além de ser imortal, é vista por toda a vida de um
mortal e nunca provoca o cansaço de ouvir, tampouco a inveja, porque
o fato de fruir sua matéria contorna sempre o objeto nos
transcendendo de alguma maneira. Mas falava de gosto, que sim, também
não se discute, quando o assunto é mesmo música. É muito difícil
dizer o que se deve ouvir, por mais que se saiba que letras são as
de Renato Russo, Caetano Veloso, Lulu Santos e outros para quem
desfruta da MPB. Como na nutrição, há micro e macronutrientes para
preencher a cadeia alimentar, e na música ou mesmo na busca por
entretenimento também há essa divisão às vezes tão visível a
olho nu, construtora e algumas vezes disfarçada de inofensiva.
Falemos
de quem vive, resiste e brilha no auges dos quase 61 anos,
atravessando essa liberdade da indústria cultural, no meio de toda
essa pasmaceira, com o álbum Madame
X, de Madonna. As
críticas se dividem, entre os que aceitam o trabalho e os que o
detonam por não se ver dentro da evolução da artista. Como Madonna
é Madonna, e não deve nada a ninguém, pode usar toda sua
criatividade para estourar nas mais tocadas através de parcerias com
Maluma, Anitta e outros conhecidos por seus públicos neste último
trabalho. Claro que as críticas geralmente são conscientes, a
depender de onde vem, se de um fã que acompanha toda a sua
trajetória a um jovem que nasceu ouvindo Britney Spears, a outro que
considera encerrado sua qualidade artística em Confessions
on a Dance Floor, de
2005, até aqui no décimo quarto de seus 13 álbuns de estúdio.
Conseguimos
entender o que se deseja passar nessa afirmação: talvez não seja
mesmo tão interessante hits chiclete, com versos repetidos em eco,
editados em mixagens e remixes produzidos por dj’s de qualquer
balada e que se torna o próximo disco. David Guetta e o brasileiro
Alok são exceções raras. Há que se separar o que é possível
fazer ao vivo (sem dublar), ou sobreviver sem um videoclipe super
produzido, o que vai além do sonoro e atravessa gerações e rompe
estereótipos, como os sucessos Like
a virgin,
Bordeline e Like
a prayer. Agradar a todos
não é mesmo o objetivo de seu mais recente trabalho, que retorna ao
foco político de seu trabalho anterior ao Confessions,
o álbum American life.
A abordagem passou a ser a estratégia do sucesso de uma canção
depois do videoclipe, mas plataformas de stream competindo com a
indústria de discos ainda sobrevive e bem apenas com o áudio. Até
o presente Madame X
já vendeu aproximadamente 500 mil cópias.
O
novo álbum de Madonna é espetacular em todos os sentidos citados
acima, ele consegue alcançar o visual, o sonoro, o eletrônico, o
clichê, o dueto e o político. Mas para a crítica isso não é tão
interessante, porque é como se não tivesse coesão, quisesse ganhar
de todos os lados, e é o que Madonna faz quando luta pelas minorias
e “lutando em muitas frentes ao mesmo tempo”, como criticou um
jornal britânico. Em entrevista ao Fantástico,
ela diz que não consegue lembrar, atualmente, de nenhum artista que
defenda a liberdade e lute por isso, citando que só no passado
existiram Nina Simone, Bob Marley e que fizeram o que ela faz desde o
início de sua carreira. No quesito lutar pelas minorias, Elza Soares
é muito próxima. Sua natureza experimental e revolucionária nunca
deixa de estar presente em seus discos, e digo também de nossa Elza.
Madame
X é um apelido adotado por Madonna desde seus 19 anos, sugerido por
sua professora de dança, a revolucionária Martha Graham, e que
neste disco, mais que em todos os outros, se mostra como defensora de
todos os marginalizados, o que num tempo de retrocesso cultural e
puro conservadorismo faz todo sentido. “Madame X é uma agente
secreta. Viajando ao redor do mundo. Trocando de identidades. Lutando
por liberdade. Trazendo luz à lugares escuros. Ela é uma dançarina.
Uma mestre. Uma chefe de estado. Uma dona de casa. Uma equestre. Uma
prisioneira. Uma estudante. Uma mãe. Uma filha. Uma professora. Uma
freira. Uma cantora. Uma santa. Uma prostituta. O espiã na casa do
amor. Eu sou Madame X”, declara Madonna. Ao assistir os videoclipes
conseguimos perceber cada um desses sujeitos conjugados num tempo
presente por meio da voz de um ícone da música e que neste último
trabalho optou, por meio das parcerias. pelo ritmo latino cantando
inclusive em português.
É
preciso ouvir para saber o que se passa, porque Madame
X será aquele álbum que
fará muitos se indagarem por que ainda não ouviram ao menos algumas
das faixas ou visto alguns dos seus videoclipes. Abro destaque para
Dark Ballet,
canção estranha que já é canção de liberdade, com versos tão
poderosos quanto sua referência histórica, Joana D’Arc, que se
disfarçou de homem para ajudar os franceses na Guerra dos Cem Anos.
Num dos versos é dito:
“Eu
posso me vestir como um menino, eu posso me vestir como uma garota”.
Na sequência, temos God
Control, com um coro
infantil na abertura e depois toda uma enxurrada de tentativa de
fazer despertar, citando exemplos de como estamos perdidos pelo ódio,
pelo fascismo, pela violência armada vista como solução. No
videoclipe Madonna se divide entre estar numa máquina de escrever
tentando compor e também indo pelas ruas com sua turma liberta dando
ritmo e velocidade na música e retratando também o tiroteio numa
boate.
Outras
faixas, como Batuka,
onde ela canta e dança com mulheres africanas de Cabo Verde, ou
mesmo Medellín,
com o cantor colombiano Maluma, e para quem curte funk pode ouvir Faz
Gostoso, com Anitta, que
foi, depois de Bitch I’m
Loca, também com Maluma,
a melhor parceria de todo álbum apesar da pobreza de letra da
canção. A música é de fato a alma do universo, ultrapassa a
razão, nos faz discutir e perceber a evolução da cultura como um
todo. Madame X é Madonna que é o universo com todos os ritmos, com
a luta de classes na pauta, o poder nas mãos de quem sabe o que
fazer com seu sucesso e reconhecimento. Gosto se discute, sim, e
dentro da música se discute mais ainda. Meu eterno obrigado,
Madonna, por querer despertar todos de uma maneira universal.
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João
Gomes (Recife, 1996) é
poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e
publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e
digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.