por
Taciana Oliveira__
Um bate-papo virtual com a escritora calí boreaz, a nossa entrevistada do mês na coluna Desassossego.
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calí boreaz - Foto: Henrique Chendes/ SESC MG |
como
diria Hamlet, ou a minha avó, tudo acontece exatamente como tem de
acontecer.
nasci
num outono português, num hospital da marinha nos arredores de
Lisboa, pois meu avô foi marinheiro. minhas origens remontam todas
ora ao Ribatejo — a lezíria — ora, mais a norte ainda, à Beira
Baixa — a serra. cresci a olhar para o rio Tejo, primeiro ali pelos
arredores de Lisboa, depois em Santarém, para onde nos mudamos
quando eu tinha uns 13 anos. com 17, retornei sozinha à capital para
fazer faculdade de Direito. depois, quando já não aguentava mais o
tédio da faculdade e só pensava em escrever poesia, pensei em mudar
qualquer coisinha para ver se a adrenalina aumentava... e então
aventurei-me a leste, em Bucareste, na Romênia, na língua romena, a
qual desconhecia completamente. achei isso perfeito: um ponto zero.
lá, além de completar o último ano de Direito num intercâmbio
universitário, estudei língua e literatura romenas e tradução
literária, tornei-me tradutora de romeno. voltei a Portugal e, em
meio a muitas idas e vindas entre Lisboa e Bucareste, especializei-me
em Direito da Imigração e passei a trabalhar, em Lisboa, num
instituto governamental de suporte jurídico ao imigrante, para além
de realizar traduções e interpretações simultâneas para a
embaixada da Romênia, polícia e tribunais. traduzi um romance
também, do escritor romeno exilado nos EUA, Norman Manea. logo
depois, talvez por sentir que a vida estava outra vez a ficar muito
encaixada, pensei novamente em desarrumar tudo: assim, atravessei o
Atlântico rumo ao sul, e pelo Rio de Janeiro fiquei até hoje — já
são quase 10 anos. tornei-me brasileira também, inclusive na voz.
ou seja, ganhei uma espécie de bilinguismo. traduzi outro romance do
romeno, já para português do Brasil. estudei teatro, escrevi e
realizei peças, ganhei um prêmio de melhor atriz, fui indicada a
outros, enfim, passei a dedicar-me completamente a esse ofício, que
eu, na verdade, queria desde muito pequena e que andara a adiar... ou
não. como diria Hamlet, ou a minha avó, tudo acontece exatamente
como tem de acontecer.
o
outono azul a sul
em
2018, vi um anúncio da editora Urutau para seleção de livros
inéditos de poesia de autores portugueses. eu, por acaso, estava em
Portugal na época e, de longe, pensei, então, que seria
interessante fazer um exercício de retrovisor em relação ao que eu
andara a escrever nesses anos brasileiros... descobri que tinha um
livro. havia, ali, um roteiro desse exílio (desejado) e de toda uma
clandestinidade do ser, do artista, do amante. foi assim que o outono
azul a sul acabou por nascer, sem
que eu, sinceramente, nunca tivesse pensado em publicar poesia —
talvez um romance, um dia já velhinha. mas depois que o livro
nasceu, também morreu — e isso foi muito impactante para mim, essa
força do fenômeno da publicação. houve, de fato, ali, uma
libertação, que me assombrou e interessou. gostei e passei a levar
isso da poesia a sério também, em paralelo ao ofício do teatro.
depois
que soube que a Urutau queria publicar o outono
azul a sul, escolhi algumas figuras
literárias que admiro muito para me darem a mão nessa estreia: os
escritores brasileiros João Almino, que surpreendentemente me
presenteou com o que se tornou um posfácio, Paula Fábrio e
Francisco Azevedo, que escreveram a orelha, e a escritora portuguesa
Ana Teresa Pereira, que também escreveu a orelha. como a minha
escrita tem uma ligação vital com a imagem, era importante para mim
ter fotografias e/ou desenhos no livro. as fotografias que nele
aparecem são minhas, mas para os desenhos escolhi dois artistas
muito especiais dos dois lados do Atlântico, o brasileiro Edgar
Duvivier e o português António Martins-Ferreira (que, [não] por
acaso, é meu pai :).
em
algum lugar a gente se encontrou misteriosamente através dessa
loucura que é o fazer \ consumir artístico
eis
o que me dá sentido: sentir que há, efetivamente, uma conversa
entre o que escrevi e o momento de outra pessoa. isso é
tremendamente humano. tenho tido inúmeras conversas, cada uma mais
espantosa que a outra. por exemplo, alguém que guarda o outono
azul a sul na mesa de cabeceira —
acho isso de uma intimidade fascinante. outro alguém que, desanimado
que estava nos estudos, ao descobrir o outono
azul a sul me escreveu dizendo que
algo se iluminara dentro de si e que ia agarrar-se com todas as
forças ao livro para cumprir o sonho de se tornar um professor,
adotando-o como tema de estudo oficial na sua formação na
Universidade de Letras — acho isso de uma força fascinante. outro
que vem me agradecer porque, depois de ler o outono
azul a sul, sente que está “mais
bonito”. outros tantos que me respondem aos poemas com novos
poemas, com desenhos, com fotografias e vídeos artísticos, com
traduções para espanhol, com cartas com aura de antigamente. é
alucinante de lindo. é muita coisa.
tive
uma experiência semelhante quando escrevi e fiz um espetáculo em
que contava a história do fado, aqui no Rio... as pessoas vinham-me
dizer coisas... que eu olhava para trás a ver quem seria o merecedor
de tais maravilhas... é meio surreal, porque é como se a arte me
ultrapassasse a certa altura e eu já nem soubesse do que as pessoas
estão falando. mas em algum lugar a gente se encontrou
misteriosamente através dessa loucura que é o fazer\consumir
artístico — cuja magia é justamente essa de sair do mundo
funcional, e, nisso, acabar tendo a função mais bela de todas:
quebrar-nos, por um momento, a nossa fatal solidão.
jam
poetry sessions
não
imagino ser só atriz ou só poeta. acho que uma conquista espaços
para a outra: a atriz, espaços exteriores para a poeta; a poeta,
espaços interiores para a atriz. sinto que se ajudam essencialmente.
nem falo da que dança, da que canta, da que brinca com o violão...
porque essas incluo-as na atriz, no ser do palco. juntando todas,
além de realizar videopoemas e um podcast de audiopoemas, fundei um
sarau performático no Rio de Janeiro chamado poesia
que nos sustenta (nome irônico, bem
sei, mas, no fundo mais fundo, o olhar poético é mesmo a única
coisa que pode nos sustentar). e agora inventei essa ideia de jam
poetry sessions, que são sessões
de conversa improvisada entre a poesia\vivência poética e a
música interpretada por um músico diferente a cada sessão, sem
ensaio prévio, uma jam session mesmo, só que um dos instrumentos é
a poesia — grande parte, do outono
azul a sul, mas estou inserindo
alguns inéditos também. nesta temporada de setembro, às
quintas-feiras no Midrash Centro Cultural, no Leblon\Rio de
Janeiro, terei comigo músicos que me arrepiam, como o argentino Dami
Andres e seus violões, a dupla Eduardo Oliveira e Paula Guinle com
suas guitarras e percussões respectivamente, o Fábio Nin com seus
muitos instrumentos e o João Felippe com seu cavaquinho.
[ingresso.caliboreaz.com]
só
escrevo para descobrir
como
já disse, a imagem e o som são vitais para o que escrevo. como toda
a matéria-prima que uso para escrever é a minha própria vida, meus
desesperos e incompreensões, preciso urgentemente agarrar-me ao que
está fora de mim. saio na rua e vou absorvendo detalhes, uma sombra
criativa, um gesto solto de alguém, uma folha que cai justo depois
que alguém passou, uma bola que escapa, um saco revoando no vento,
um pássaro a passar atrás dos fios elétricos, uma poça de água...
fotografo mentalmente, ou de fato, anoto, e escrevo a partir daí. e
falando do que está fora acabo por perceber, no meio do caminho, que
essas coisas de fora estão falando justamente do que eu precisava
descobrir internamente. só escrevo para descobrir. não sirvo para
escrever romances com técnica, sabendo princípio, meio e fim, e só
depois começar a escrever. até na prosa o que faço sempre é
poesia: escrever para descobrir, para me conectar com o que a
consciência não alcança — acho que, nesse sentido, poesia é uma
espécie de religião, embora essa palavra tenha sido sempre tão
pessimamente tratada que prefiro nem usá-la.
de
uma lentidão perdida
falando
em prosa, além do livro de poesia, publiquei, já em 2019, um conto
— islandeses
— a convite da agência literária Villas-Boas & Moss, que, em
parceria com a Amazon, organizou uma antologia de contos
contemporâneos numa coleção chamada Identidade.
está disponível em ebook na própria Amazon e fala, basicamente, de
uma lentidão perdida. nele, saio do pingue-pongue atlântico
Brasil-Portugal, e volto para leste... resgato a minha Romênia.
sou
uma andarilha das linhas
não
posso citar nomes de influências literárias, porque tudo me
influencia — andar na rua me influencia, como disse. não posso
dizer que há um autor que me influencia, porque o que me influencia
nunca é o conjunto de uma obra, ou um estilo, e sim palavras soltas
— que tanto podem estar no texto de um autor consagrado, quanto no
de outro completamente desconhecido. e nesse momento, admiro ambos
igualmente. sou uma andarilha das linhas, percorro-as e quando me
espanto não importa quem me espantou. às vezes, até, o espanto vem
do erro, de algo que achei que li e afinal não era bem assim, que
achei que ouvi e não era nada disso. e agarro esse erro como
potência poética. o tal mistério da arte que nos ultrapassa.
agora... sim, tenho fases de querer ler tudo de um determinado autor
que me proporcionou boa dose de momentos de espanto.
sei
que não posso demorar muito a publicar
ao contrário do outono azul a sul, que foi sendo escrito, ao longo de muitos anos (e de muitos eus-poetas), sem nem sonhar que ia ser livro, no momento em que decolei rumo a Portugal para o lançar, tive uma rápida sensação que só pude descrever escrevendo um poema durante as exatas 12 horas de voo até a escala em Frankfurt. a partir daí, começaram a surgir “filhos” desse poema inaugural e percebi que um novo livro — num processo totalmente diferente — estava surgindo de uma maneira, agora, muito rápida — quase tão rápida, proporcionalmente, quanto a sensação que o originou. mas ainda estou olhando para ele, esse novo livro, percebendo que caminho lhe dar. talvez porque tenha sido tão rápido, estou dando a ele alguns tempos de respiro. mas ele é o que quero dizer neste momento, sei que não posso demorar muito a publicar.
ao contrário do outono azul a sul, que foi sendo escrito, ao longo de muitos anos (e de muitos eus-poetas), sem nem sonhar que ia ser livro, no momento em que decolei rumo a Portugal para o lançar, tive uma rápida sensação que só pude descrever escrevendo um poema durante as exatas 12 horas de voo até a escala em Frankfurt. a partir daí, começaram a surgir “filhos” desse poema inaugural e percebi que um novo livro — num processo totalmente diferente — estava surgindo de uma maneira, agora, muito rápida — quase tão rápida, proporcionalmente, quanto a sensação que o originou. mas ainda estou olhando para ele, esse novo livro, percebendo que caminho lhe dar. talvez porque tenha sido tão rápido, estou dando a ele alguns tempos de respiro. mas ele é o que quero dizer neste momento, sei que não posso demorar muito a publicar.
por
novos — não lugares — olhares
acredito
que escrever poesia e comunicar de alguma maneira isso que se
escreveu são atos de amor, de profunda comunhão com o que temos de
mais humano, e que tantas vezes é o que está mais distante de nós
no mundo rasteiro do corre-corre diário. a poesia — como disse a
poeta portuguesa Natália Correia — é para comer (ponto de
exclamação). para entrar dentro dos pulmões e nos fazer respirar
mais uma vez, apesar do absurdo de estarmos
aqui agora e de repente não
estarmos mais. para nos desembaçar
os olhos e fazê-los transgredir as margens do nunca-visto e do
tão-visto-que-ficou-banal — que são lugares nos quais a atenção
é geralmente reduzida ou nula — e, assim, ampliarmos o pensamento,
e, consequentemente, o desapego do entendimento. fecho com um verso
do outono azul a sul
que resume praticamente tudo isto: “por novos — não lugares —
olhares”. ou com um pequeno poema do novo livro, ainda inédito:
“no vazio pachorrento que te fura \ por ali passa a centelha \ e
enquanto passa \ dilata-o”.
em
jeito de ps, tenho ainda um convite:
para um “cafezinho” na minha casa virtual — caliboreaz.com
—, que eu mesma construí e onde vou colocando os videopoemas,
podcast, colaborações em revistas, agenda, espaço para encomenda
do livro (outono azul a sul)
e do conto (islandeses),
e onde estou sempre limpando, decorando, regando, como numa casa
mesmo. e um último convite, este mais interativo: para que este
monólogo vire conversa, encontra-me também no instagram
@caliboreaz,
que, para mim, funciona como uma extensão imagética das páginas
escritas (para quem não tiver instagram, também tenho página no
facebook.com/caliboreaz).
calí
boreaz, 25 de agosto de 2019
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calí
boreaz nasceu
em Portugal, onde estudou Direito, em Lisboa, em meio às noites de
fado e flamenco. Viveu em Bucareste, na Romênia, onde estudou língua
e literatura romena e tradução literária. No virar de 2009 para
2010, atravessa o Atlântico rumo ao sul para viver no Rio de
Janeiro, onde se entrega ao estudo e ao ofício do teatro. Na
literatura, traduziu do romeno os romances O
regresso do hooligan
[ed. ASA, Portugal], de Norman Manea, e Lisboa
para sempre
[ed. Thesaurus, Brasil], de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia,
outono
azul a sul
[ed. Urutau, Portugal & Brasil], é um relato poético do exílio
e da clandestinidade, e tem posfácio de João Almino e desenhos de
Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira. Integra também a coleção
Identidade vol. II da Amazon Kindle com o conto islandeses.
Seus textos têm aparecido também em várias revistas literárias
brasileiras, portuguesas e galegas, e em exposições como a Bienal
Internacional de Arte de Gaia 2019, em Portugal, e o Hyderabad
Literary Festival 2019, na Índia. [casas
virtuais: caliboreaz.com | instagram.com/caliboreaz]
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Taciana
Oliveira
é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife,
apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura.
Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra
quem quiser ouvir: Ter
bondade é ter coragem.