por Adrienne Myrtes___
QUERO
estacionar meu nariz na seção de ervas do Mercado de São José,
pensar que meu nome é Mauricéa; trago na bolsa um batom vermelho e
uma gilete para usar embaixo da língua. Mal completei vinte anos e
acredito na vida e no amor.
E
me imagino caminhando entre os boxes do mercado, feito usava fazer
naquela época, quando andava à procura da mistura perfeita para me
servir de banho, e me banhava com molhos de arruda, quebra-pedra,
espadas-de-são-jorge ou santa-luzia combinados entre si e entre
todos para deixar claro que comigo ninguém podia e, assim, me curava
dos caminhos fechados e da escuridão noturna reinante quando saía
para trabalhar; toda trabalhada na sedução, fugindo da família a
mim destinada, criando um destino brilhante, cravejado de paetês e
vidrilhos, coisa que já nem se usa.
Lembrar
é coisa em desuso. Ficar velho é coisa que não se deve usar sob
qualquer justificativa; é feito melancolia, perdeu a serventia,
efeito dos tempos, dos ventos que varreram minha vida, varreram a
história e o rumo do mundo. Minha história se confundiu e meu mundo
caiu muitas vezes; eu ficaria feliz em ter as sobrancelhas de Maysa.
Os cabelos eu sempre preferi loiros, quando os tinha. E sinto pena de
mim por não ter guardado a inocência e saber o quanto acreditar na
vida e no amor é brega, piegas e sem o mínimo direito a se tornar
cult. Canções podem se tornar cult; flores plásticas podem sofrer
essa mutação; estampa de animais, cult. O amor não, o amor é
brega, sem remédio.
Estico
os olhos sobre a paródia de varanda de minha quitinete e lembro
quantas vezes me montava no banheiro do bar, porque saía com a roupa
ensacada em plástico de supermercado para não dar pinta diante da
família, para não causar desconforto pulmonar na tia asmática e já
viúva, muito sacrificada e empenhada em 17 me tornar um adulto
merecedor de respeito, respeitando a circunstância que fez de mim
sua herança; a única deixada pela irmã morta, tão jovem e tão
solteira, embora grávida. Partiu durante o parto. E lembro ainda,
buscando uma estampa perfeita, precisava circular a tarde inteira
pelo Cais de Santa Rita, enchendo de pernas as ruas da Zona da
Cachorra, procurando uma kanekalon loira e lisa para completar meu
cabelo na noite do Chantecler: palco de vida e morte de momentos
meus. E o Chantecler não existe faz é tempo, eu soube, o governo
interditou, reformas, restauração. O casarão, feito tudo nesse
mundo, não resistiu aos dias; o que resiste em mim é o costume de
apelidar qualquer lugar onde se reúnam primas e donas de Chantecler.
Puro carinho, para reviver um tempo quando eu ainda vivia. Vivia
pelas ruas do Recife velho, só na fechação, apertada em minissaias
muito mini, que eu ficava puxando pra baixo, charme puro. Porque
achava lindo quando via as meninas puxando a calcinha que teimava em
se refugiar do arredondado da bunda, atendendo ao apelo do rebolado;
e eu, sem bunda, sem calcinha, lutando para manter preso entre as
pernas aquele apêndice de sexo que me sobrava sob o conforto da
cueca. Coisas das quais nunca consegui abdicar, nem do pau, nem da
cueca. Me restava o arremedo de puxar a saia, os dedos em pinça, a
mão atravessada pelas costas, valorizando o movimento.
OMAR,
tá acordado? Vou buscar os remédios. Omar é meu cu, me chame de
Mauricéa.
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Adrienne
Myrtes nasceu no Recife (PE) e vive em São Paulo. Artista plástica
e escritora, participou de algumas antologias e publicou A mulher
e o cavalo e outros contos (2006), o romance Eis o mundo de
fora (2011) e a novela Uma história de amor para Maria Tereza
e Guilherme (2013) e Mauricéa (2018) de onde é o trecho
acima.