por
João Gomes__
Fotografia: Dani Ortiz |
Na
seção Falatório de outubro conversei por e-mail com a
escritora pernambucana Adrienne Myrtes. Nossa conversa
aconteceu alguns dias antes de ser anunciado que seu romance Mauricéa
(Selo Demônio Negro/Edith) ficou entre os finalistas do Prêmio
Jabuti. Falamos, entre outros assuntos, sobre literatura panfletária
em cima da temática LGBTQI e o que move o seu trabalho que não se
atém às exigências rasas do mercado.
1 - Adrienne,
você reside em São Paulo desde 2001, mas sua escrita contém muito
do Recife e de Olinda em suas construções narrativas. Esse
atravessamento, troca de paisagens, é um mote recorrente, quer seja
pela saudade do lugar ou, como no seu caso, a vivência dos seus
personagens. Como é para você lidar com essas diferenças de
lugares, recorrendo sempre a um antes e depois perceptível em sua
trajetória?
Minha
escrita acompanha, via geral, o caminho do meu pensamento. Esse fluxo
que vai, volta, dá voltas em torno de si mordendo o próprio rabo
desenha o movimento do meu raciocínio. As lembranças também
acompanham o ritmo, dançam, entrelaçam-se as recentes e as antigas,
gosto de levar isso aos livros. No caso dos deslocamentos físicos
eles reforçam o deslocamento pessoal de cada personagem, a falta de
pertencimento natural. Conheço bem esse não lugar e gosto de olhar
para ele com uma lupa durante a escrita.
2 - A
maneira como se diz é muito mais importante do que sobre qual tema
vai se narrar. Poderia contar como se deu sua formação
literária até o visível amadurecimento como escritora e quais são
suas referências?
Minha
formação literária se deu pela leitura, sou leitora voraz desde a
infância, sinto muito prazer na leitura e isso me ajudou a aprender
a escrever, quase por osmose. Na literatura desde muito cedo me
apaixonei pelos autores russos e portugueses, pra citar os
estrangeiros; entre os brasileiros comecei lendo mais poetas:
Bandeira, Drummond, para em seguida passar aos
prosadores: Machado, Graciliano, Gilvan Lemos,
Raimundo Carrero. Fiquei maluca quando conheci o texto de
Campos de Carvalho. E, além da literatura, sofro influência
dos ruídos da vida, amo a fala do nosso povo, chego a me emocionar
hoje quando ouço nosso sotaque, tão caro para quem vive longe. De
fato acredito que qualquer fenômeno da vida seja passível de
leitura e interferência em nosso processo de escrita.
3 - Sua
escrita é, a meu ver e prazer, repleta de metáforas.
A imagem, a analogia, a construção das palavras são recursos
utilizados para narrar histórias repletas de humanidade e
verossimilhanças. Suas personagens pulsam, e o sangue é narrado
enquanto escorre, enquanto o ato acontece. Percebi muito disso no seu
romance Eis o Mundo de Fora e mais agora em
Mauricéa. Quanto dura essas gestações
narrativas sempre aos cuidados do tempo?
O
tempo médio que gasto para gestar um romance é de três a quatro
anos; foi essa a média nos dois casos. E preciso confessar que adoro
esse processo, que saboreio a convivência com as personagens,
converso com elas, escuto suas histórias, isso acaba sendo o que dá
sentido a todo o resto.
4 - Você
participou, entre outras, de antologias como Os Cem Menores
Contos Brasileiros do Século, organizada por Marcelino
Freire, e 35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum,
por Ivana Arruda Leite. Nestas em especial, há consagrados nomes.
Qual a importância de participar de antologias e como você percebe
os ganhos para quem edita, organiza, participa e lê?
É
sempre honra e alegria estar ao lado de pessoas a quem admiro, que
formaram minha vida de leitora e contaminaram minha escrita. Penso
que todos nós ganhamos em termos de trocas e afetos; com relação a
ganhos financeiros eles ou quase não existem ou inexistem
completamente. Todo trabalho em torno da literatura finda por ser
resistência e insistência naquilo que é nossa verdade, naquilo que
nos move.
5 - Sua
escrita reflete muito o estar no mundo. Em Mauricéa
acompanhamos a narrativa de uma personagem transgênero,
que parte do Recife em tempos de ditadura para uma São Paulo que
engole todos. O desconforto e sofrimento da personagem
é muito aparente, chego inclusive a compará-la a uma
Macabéa com o diferencial da ardilosidade e da capacidade de se
defender num mundo opressor. O fato de ter sido
violentada por idosos homofóbicos, que ela conhecia da fila do posto
de saúde, chamados por Omar de “a gangue da terceira idade”
figura um absurdo que é real. Você já tinha em mente toda a
história de Omar, ou ela foi surgindo aos poucos, como seus amores,
no desenrolar da narrativa?
Eu
não conhecia a história de Omar/Mauricéa quando iniciei a escrita.
A exemplo do meu primeiro romance: Eis o Mundo de Fora, eu
sabia de onde estava partindo e onde queria chegar, o caminho a ser
tomado para tal foi todo construído em parceria com o(a)s
personagens.
A
história da agressão que Mauricéa sofre por parte dos idosos veio
a reboque de uma vontade minha de levantar questões a respeito do
quanto a velhice é indicativo de amadurecimento, ou não. E em uma
dessas minhas conversas com Mauricéa descobri que eles se conheciam
da fila do posto de saúde, percebi que esses idosos seriam pessoas
amarradas a um contexto social preconceituoso, estariam carregados de
suas frustrações e dispostos a descarregar tudo isso em cima de
quem lhes parecesse mais livre. A partir disso fui tecendo a história
da agressão, que a princípio pareceria absurda, por se tratar de
idosos, mas que nosso novo contexto político social se encarregou de
tornar verossímil.
Com
os amores se deu o mesmo, ela, Mauricéa, me contou quem eram, como
se conheceram e o que viveram. E foi muito significativo que eu tenha
escolhido o nome de Jonas e só depois, pesquisando sua origem,
descobri que Jonas é pomba, fechando assim uma teia com a infância
de Omar, o mata-pombos, e a Gaiolinha (apelido da escola em que ele
estudou).
Tive
muita sorte de encontrar Mauricéa, a história que ela me contou
continua me emocionando até agora.
6 - Ainda
sobre Mauricéa, que é um “convite à
reflexão da barbárie cotidiana”, como bem analisou o crítico
Maurício Melo Júnior no Jornal Rascunho, gostaria de saber o que
pensa Adrienne sobre literatura panfletária na eterna luta sobre o
bem e o mal. E se possível, gostaria que comentasse o fato de alguns
escritores, que não escrevem sobre a temática LGBTQI, quando na
Bienal do Livro do Rio viram todos os livros dessa temática, ao
serem censurados, comprados por Felipe Neto e entregues
gratuitamente. É este aproveitamento, visando somente o lucro, que
faz a literatura se tornar panfletária e reduzida?
Penso
que quando existe preocupação com o ser humano a literatura se
coloca acima do panfletário. Falando em particular do meu trabalho,
porque nasce da minha verdade interna, tenho a preocupação de dotar
o(a)s personagens com o máximo de humanidade, mostrando além de
suas dificuldades, dores, etc, suas baixezas e vilanias; porque não
acredito em super-heróis, não acredito em certezas quando se trata
de construções humanas. Todos nós somos passíveis de falhas e
levamos isso para o que construímos. O panfleto nasce no momento em
que nos colocamos acima do erro, no momento em que nos cremos
infalíveis, detentores e protetores dessas certezas.
E,
se alguém pensa que escrever é tarefa de ocasião para atender à
demandas de mercado, eu só lamento. A escrita que não se fundamenta
na verdade interna do autor não alcança o leitor, penso eu.
7 - Além
de escritora, você também é artista plástica (conheci algumas
gravuras suas no miolo e capa do seu livro Eis o mundo de
fora). Ao mesmo tempo, percebo a concisão do seu trabalho
e me surge uma questão para artistas que produzem com o equilíbrio
do amadurecer. Ao se tornar escritora, artista em geral, o que você
tinha em mente e o que mudou com o passar dos anos? É uma escolha
publicar com uma distância maior de tempo?
Escrevo
desde a adolescência, pra ser mais exata, desde a infância, óbvio
que durante a infância e adolescência escrevi o que me era possível
na época, feito um exercício. Durante um tempo me dediquei
exclusivamente às artes plásticas por contingências que a vida foi
criando e eu, que sinto essa necessidade de expressão artística,
fui me adaptando e desenvolvendo meios de me colocar artisticamente
no mundo. Do primeiro livro que publiquei, em 2006, até agora,
lógico, minha vida mudou, eu mudei, o mundo idem. Existe a
contaminação natural que sofremos a partir dessas mudanças e o
texto vai caminhando novos rumos porque a maneira de olhar as coisas
é renovada. Não lembro se eu tinha alguma ideia específica em
mente quando comecei porque, de fato, nem sei quando comecei, escrevo
e desenho desde que me entendo por gente.
Se
a pergunta se refere a minha primeira publicação a única coisa que
havia era a necessidade de me expressar, de me comunicar, de estender
uma ponte entre mim e o outro; essa necessidade permanece, hoje ela
utiliza outras maneiras para essa construção, mas a motivação é
a mesma. Com
relação à distância de tempo, cada livro pede o próprio tempo,
eu obedeço.
8 - Sua
trajetória como escritora começa com o surgimento dos blogs, um
pouco antes da concisão dos 140 caracteres, e você também foi
editora do site Cronópios, que não encontramos mais disponível na
rede. Como é possível resistir com arte num país liderado por
inimigos do conhecimento que humaniza?
Embora
eu nunca tenha escrito blog, sim, publiquei meu primeiro livro quando
os blogs estavam em sua época de ouro. O twitter chegou depois, mas
antes dele, em 2004, Marcelino Freire já organizava e
publicava a antologia Os Cem Menores Contos da Literatura
Brasileira, da qual faço parte. Para essa antologia escrevemos
microcontos com o máximo de 52 toques, incluindo espaços e
pontuação e excluindo o título, ou seja, fomos precursores dessa
escrita rápida e, antes de nós, o Augusto Monterroso, que
serviu de inspiração para o Marcelino.
No
Cronópios tentei traçar um rápido panorama do que estava
acontecendo na literatura contemporânea naquele momento, lógico,
muita coisa me fugiu, não deu tempo de ser mostrada porque minha
vida foi tomando outros rumos e não acompanhei o Cronópios até o
seu final.
Com
relação a como é possível resistir: a literatura é meu lugar de
resistência diante da vida. Pra mim, o contrário de exercer essa
resistência é morrer e não tenho planos pra isso no momento. Tudo
bem que ela, a vida, pode fazer esses planos à minha revelia, haha.
9 - Fazer
um livro nem sempre é tarefa fácil, por mais técnica e
amadurecimento que se tenha. Nos seus livros, sempre há
agradecimentos e a lista é sempre afetiva, com nomes de outros
escritores, nomes da ficha catalográfica, e sempre o acerto na
profundidade da realização do trabalho. Como você interage com
esses apoiadores de sua arte? O fato de seus primeiros leitores serem
também escritores traz ao processo de escrita mais segurança?
Tenho
a sorte de ter bons amigos entre escritores e escritoras
contemporâneo(a)s, talvez minha sorte seja ainda maior, a de estar
vivendo na mesma época de gente muito boa, literariamente falando, e
ao mesmo tempo muito generosa. Agradeço sempre a todos que
contribuíram para o trabalho de alguma maneira e sim, me sinto
privilegiada por ter essas pessoas ao meu alcance e poder ouvir suas
impressões de leitura durante o processo de escrita. Nunca havia
pensado nisso, mas traz segurança, são opiniões de quem domina o
assunto.
Adrienne Myrtes/Fotografia: Dani Ortiz |
10 - Ao
finalizar Mauricéa vi, dentre as construções
tão valiosas nas páginas daquele curto e tão bem tocado romance, o
tempo que foi escrito: “Recife/São Paulo, do verão e 2013 ao
inverno de 2016.” Mas o mesmo só foi lançado em 2018 pela editora
Edith. O que podemos aguardar desta escritora tão peculiar e segura
de si nos próximos anos?
É,
a edição acabou atrasando um pouco, estava programado para 2017 e
aconteceu em 2018, mas penso que tudo tem hora certa para acontecer.
Tenho alguns livros já começados, outro pronto, ainda não sei qual
deles será o próximo. Contraditoriamente ainda estou ligada a
Mauricéa ao mesmo tempo em que tomo notas para um próximo romance.
Uma coisa é certeza: o que vier estará carregado da minha
necessidade de escrita para o momento, esse momento presente é só o
que tenho e é tudo porque ele está permeado pelo passado e vem
grávido do futuro, procuro trabalhar com isso. Até agora está
dando certo.
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*Adrienne
Myrtes nasceu no Recife (PE) e vive em São Paulo. Artista plástica
e escritora, participou de algumas antologias e publicou A
mulher e o cavalo
e
outros
contos (2006), o romance Eis
o mundo de fora (2011) e a
novela
Uma história de amor para Maria Tereza e Guilherme (2013).
João
Gomes (Recife, 1996) é poeta,
escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida
Secreta. Participou de antologias
impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.