por
Rebeca Gadelha_
O
viver é matéria-prima dos versos de Ontem Estive Cálido
(Editora Urutau, 2018) de Marcus Vinicius, historiador,
professor e poeta. São os cenários do cotidiano que desfilam pelas
páginas, são as pequenas e as grandes coisas que passam
despercebidas na imensidão dos dias que se precipitam uns sobre os
outros - é o silêncio que a tudo engole na madrugada, é o avô
acomodado na cadeira de balanço a observar a estrada monótona, é o
calor que a tudo dilata nas tardes nordestinas.
ontem
estive cálido
esvaziei
as latas de pomadas
fichei
as receitas dos ancestrais
as
cartas que chegaram relatam
brincadeiras
de fim de dia
saudades
e acrobacias
ontem,
deixei que os comprimidos
cuidassem
do sono
respondessem
minhas cartas
abarrotadas
que
os medicamentos fizessem
selfie
coletiva
festa
célere
pôr
fim.
Febre,
poema de Marcus
Vinicius
O
livro divide-se em três partes: Sintomas, posologias e
outros desenganos; Devaneios e refundações; Revérbero. Os
versos em todas as partes possuem uma crueza precisa e bela - é a
realidade (re)contada e transmutada por sob os olhos do poeta, seja
ela o falecimento de um ente querido ou a história da humanidade.
Ontem estive cálido é um livro de poemas que mais parece uma
travessia pelos cenários e imaginários do Nordeste, é também
breve - com 80 páginas - do tipo que pode ser lido num só fôlego
e depois lentamente, como que primeiro para saciar o apetite por
poesia e depois para saborear os versos.
filho,
são sete horas e cinco minutos
não
tenhas medo
não
adormeças agora
vive
este minuto sem fim aqui
acabo
de sonhar com baleias
a
morte é o latido do mar
marés
cheias de cruzes e almas
filho,
vejo o brilho em teus olhos
o
brio que escorre de tua fronte
teus
segredos lindos
teu
amor difícil
tranquiliza-me
não
desesperas, vê essa lareira
acesa
em meu peito, nosso rebanho
solto
e ferrado pela pronúncia de meu sangue
filho,
nunca tive esta cama macia e sedosa
aninhei
todos vocês em redes e palhoças
o
vento do sul nos machucou mais
que
as campeadas de verão
vê,
aquela macambira nunca nos negou
o
espelho da história
colhi
nela frutos absolutos e insolúveis
alimentando-os
em porções generosas de firmeza
e
propósito
sinto
tua respiração alta e nervosa
fogosa
amargosa
debaixo de chuva
tranquiliza-me
absolve-me
dos erros cometidos, imensos,
quentes
das
lições em demasia
da
voz imposta
da
raiva funda grudada nas paredes do corpo
filho,
arrebanha teus irmãos
veteranos
agenda
nas fileiras do terreiro
o
terço pálido de vozes
congrega
sobre meu espírito
a
umidade das bocas
a
sinergia recôndita dos companheiros
vela
minha memória sem a sordidez dos meus atos
esquece-te
os séculos, desprezas os rastros:
advoga-me
aceita-me
como fui
ama-me,
enfim.
filho,
são sete horas e cinco minutos
dessa
manhã fim
deixo
para ti o não cumprido
diligências
da velhice
batalha
no capim alto essa noite
arvora-te
nas enxadas do oitão
saúda-me
rega
as plantas insones para que
teus
filhos sob elas repousem
clama-me
despede-te.
para
Ademir Santana, que assistiu ao fim
Herdeiros,
poema de Marcus Vinicius
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Marcus
Vinicius nasceu
em Juazeiro, Bahia, em 1988. Formou-se em História e é professor da
Universidade Federal do Vale do São Francisco. Atualmente reside em
Recife, onde cursa o doutorado com pesquisa sobre a obra de Jorge
Amado. Tem poemas publicados em revistas, jornais e blogs de
literatura. Compartilha poemas no perfil
@poesiademarcus.
É autor dos livros O
cacto não cresceu
(Moinhos,
2018); ontem
estive cálido
(urutau,
2018).
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Rebeca
Gadelha
nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na companhia
dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista digital, é
apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem medo de
avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é fígado. Foi
responsável pela diagramação, ilustrações e concepção visual
em Balbúrdia, participa da coletânea Paginário, publicada pela
Editora Aliás. Atualmente escreve para as revistas do Medium Ensaios
sobre a Loucura e Fale com Elas sob o pseudônimo de Jade
.