por
Rebeca Gadelha__
Artista: Smile |
Horácio
veio do Norte com seu irmão, deixou na floresta um outro,perdido à
beira de um rio, apenas a espingarda deixada para trás. Na cidade ao
lado da capital comprou umas terras num povoado, fez um sítio,
casou-se com Chiquita, viveu da terra, dos bichos, teve filhos e
filhas — todos os nomes começavam com a letra M . Dizem estes que
Horácio ajudou a construir a cidade, hoje nada resta dele além de
uns poucos papéis na secretária de planejamento: Horácio é apenas
um nome que se perdeu, dentre tantos outros, no meio da história de
uma cidade — como tantas outras — que cresceu engolindo gente.
Seus
filhos já não lembram de suas historias, apagaram de seus nomes o
sobrenome do pai, da mãe, venderam-se por cargos e dinheiro (ou os
dois) roubaram uns aos outros quando tiveram a chance, não pouparam
nem Chiquita — a mãe — quando o pai finalmente fechou os olhos:
falaram da urgência de vender tudo, que uma mulher sozinha e idosa
não podia cuidar se sítio, que era melhor morar na cidade, onde
havia médicos, que deus a protegesse, mas ela não estava mais em
idade de morar por essas bandas, tão longe de tudo. Um latifundiário
comprou o sítio, Chiquita passou a morar na cidade, na casa que
tinham e quando ela morreu, nem o corpo esfriou e o terreno também
foi vendido: os vivos tem suas urgências e o dinheiro é sempre uma
delas, atropelamos uns aos outros por moedas e seguimos a vida sem
mais preocupações — pessoas também são degraus — que
importam?
Não
sei o que restou de Chiquita, seu nome batiza a banda da cidade, mas
se algum dos integrantes sabe quem ela foi, que sonhos teve, que
tristezas, que alegrias, isto já não sei dizer, nem eu a conheci e
não sei dizer se gostaria. “Parecia sua avó” é o que mãe diz,
se as duas são realmente parecidas então terminaríamos do mesmo
jeito sempre: desbaratadas.
*Siúil
a Rún é o nome de uma canção irlandesa, interpretada pelo grupo
Clannad e mais tarde pelo Celtic Woman, cantada do ponto de vista de
uma mulher que se despede de seu amor, é geralmente traduzido como
“Caminhe, meu amor” (como foi escolhido aqui) ou ainda “Vá,
meu amor”.
*Este
é o terceiro texto da série Reminiscências, que narra a tentativa
de uma garota de recuperar parte da história de sua família a fim
de compreender a si mesma. Clique aqui para ler o prólogo
ou aqui
para ler a parte I
Rebeca
Gadelha nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na
companhia dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista
digital, é apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem
medo de avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é
fígado. Foi responsável pela diagramação, ilustrações e
concepção visual em Balbúrdia, participa da coletânea Paginário,
publicada pela Editora Aliás. Atualmente escreve para as revistas do
Medium Ensaios sobre a Loucura e Fale com Elas sob o pseudônimo de
Jaded.