2019: Retrospectiva do ódio e da estupidez


por João Gomes__
Charge da exposição "Independência em Risco" 

 Como na descrição de uma conta do Instagram que vi esses dias: o futuro é crespo. Mas crespo não como sinônimo de ruim. E sim de empoderamento, representatividade, inclusão. Demora, como na transição capilar, mas não tem como evitar, deixar pra um depois de são nunca. Nada foi fácil na história das civilizações, e como compôs Belchior e regravou Emicida com Pabllo Vitar e Majur em AmarElo: “Tenho sangrado demais, chorado pra cachorro / Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.” 

Na retrospectiva de fim de ano sempre cabe o que se deseja lembrar, de acordo com os interesses de apontar determinados momentos dos 12 meses para os 365 dias costurados num tempo de ódio eleito. Ao receber a faixa do antecessor a continuação: agora é a nossa vez, vamos destruir tudo que facilitava o crescimento do país, e fazê-lo pior sob nossos interesses, governando para poucos, perseguindo quem discorda de nossas pautas e atingindo também, como tiros nos próprios pés, quem nos elegeu nisso daqui. Mais recente e não distorcida, a um eleitor seu: “só pelo bafo não vai ter emprego”.

Hoje, para quem é sincero consigo mesmo, não nega que foi o desmonte total da nação num salve-se quem puder com um retorno à miséria, à violência potencializada aos mais frágeis. Voto de confiança não se dá a quem não tem nem ao menos capacidade de dialogar, mas isso é o espelhamento de quem o elegeu. Seguiremos adiante, dialogando sempre, denunciando sobretudo e nos manifestando na escrita de nossa história.


Charge da exposição "Independência em Risco" 

Seria pornográfico se fôssemos expor, como fez Alexandre Frota expulso do partido do presidente, cada uma das vergonhas que tivemos que rechaçar. Será que agora ficará claro sem escolha, sabendo que a ordem não virá através do armamento civil, que não é facilitando para quem comete infrações e tirando o acesso dos mais pobres à universidade que teremos mudança.

Há um escancarado horror a quem quase nada possui, só a vontade de conseguir de forma honesta, de forma igualitária através do conhecimento. E isso é crime nesse país de tamanha desigualdade, a tal mudança num falso amor à pátria está sob o comando do moralismo hipócrita. A coisa é muito mais grave que fazer arminha com a mão, que não passa, não resolve nada. E por isso resistimos, e não como almas penadas, mas como observadores dos dias que serão narrados e entendidos mais ainda no futuro.

Charge da exposição "Independência em Risco" 

Sabe o melhor de tudo: somos muito mais que esse emplastro que desagrega a nação, e é isso que os amedronta , a cultura de todas as formas. Não tem como apagar um país inteiro, como se não tivéssemos nossa história, nossas diferenças regionais, nossas várias religiões, nossa liberdade de ir e vir e tomar tudo em nome do “acima de tudo”, do “isso daí” vergonhoso a nível mundial.

Por isso, se fosse fazer retrospectiva 2019 faria do combate à estupidez e ao ódio com tudo que, por meio da arte e da educação, fizemos e continuaremos fazendo. Porque tirar o gosto pela vida, prender a liberdade já deveria ser crime e impedimento para nunca mais voltar num ano novo. Como infelizmente retornará, a postos estaremos para lutar contra o autoritarismo, o conservadorismo, a censura e as distorções dos fatos.

Só não poderia deixar de citar quem leio ano após ano, o colunista do EL PAÍS Juan Arias, que acompanha o Brasil com a fé e a razão e em texto recente é certeiro: O mundo hoje está dividido entre a fidelidade aos valores da liberdade, de todas as liberdades que nos permitam viver sem as correntes do autoritarismo que nos sufoca, e os valores que fizeram a humanidade viver em paz. A guerra e suas ditaduras são o autoritarismo em estado puro. É o ápice da tirania incensada no altar das falsas liberdades.

Para não ficarmos apenas na estupidez, listei algumas notícias recentes deste 2019 tão obscuro mas não cego para vibrar o que abracei de melhor. Publicação do livro Sobre o autoritarismo brasileiro, de Lilia Schwartz, pela Companhia das Letras. Lançamento do álbum Madame X, de Madonna. Lançamento do álbum Planeta fome, pela incansável Elza Soares. Sucesso de bilheteria para o filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Júliano Dornelles. Soltura do ex-presidente Lula, Prêmio de Personalidade do Ano pela Revista Time à jovem ativista sueca Greta Thumberg.

À vida e à dignidade de existir são meus votos de esperança por um país que um dia, após o amanhecer de um Ano Novo e no Dia Mundial da Paz, seja devolvido ao seu povo.



Charge da exposição "Independência em Risco" 


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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.