por Taciana Oliveira__
No aniversário de um ano de existência da plataforma Mirada, convidamos a poeta mineira Adriane Garcia para um bate-papo virtual. O resultado da entrevista é uma análise consciente do papel do artista no momento atual que enfrentamos no país. Adriane não se furta em dissecar feridas sociais e nos chamar para uma reflexão: Devemos enfrentar a estupidez enquanto vivermos, é um compromisso com nossa humanidade.
É uma relação com menos desperdício, com mais cuidado
De minha primeira publicação até hoje vejo que estou mais centrada no processo de ler e escrever. Compreendo melhor o que significa a minha literatura para mim mesma, o que busco na literatura como leitora também. Acho que hoje é uma relação com menos desperdício, com mais cuidado.
Há muito barulho e desperdício nas redes
Procuro dialogar com meus leitores, na medida do possível, e as redes sociais têm sido um veículo para isso, mas é realmente difícil lidar com as redes; além do mais, o diálogo de autora/autor e leitora/leitor deve se dar mesmo é diante do livro; o diálogo verdadeiro da literatura se dá neste silêncio. Há muito barulho e desperdício nas redes, de energia mesmo, de tempo, de nosso ânimo (como “anima”, sopro de vida). Sempre me lembro daquele verso de Drummond: “Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear”. Ao mesmo tempo que o meio digital é uma vitrine, também não é nada confortável estar numa vitrine, nem ver os outros o tempo todo nas vitrines. Eu acho um espaço muito paradoxal para uma escritora/um escritor. A gente quer mesmo é ficar quieto lendo, escrevendo, sendo lido. A figura do escritor acaba se sobrepondo ao texto, em muitos casos, e é muito estranho isso.
Quando fazer um livro era ter que ultrapassar um muro de exclusão
Quanto às pequenas editoras, fora da cartilha do mercado, é uma das saídas. Há quem veja piora numa certa democratização nos meios de produção do livro, mas é a partir dessa democratização que podemos encontrar vozes (ricas, profundas) que não encontraríamos quando fazer um livro era ter que ultrapassar um muro de exclusão muito maior que o que se tem hoje.
A gente, como coletividade, não deveria deixar ninguém para trás
Eu nasci em BH, na periferia, onde sempre morei. BH nos anos 70/80 ainda era muito rural nos bairros periféricos e acho que isso foi bom, no sentido de que vivi uma certa proximidade com o que o Centro era antes de ser centro: um arraial. Tive uma infância de menina pobre, mas tive a sorte de ter uma mãe que é a pessoa mais forte que já conheci na minha vida; então ela tornava tudo melhor e valorizava estudo, me fez estudar quando tudo mandava que eu fosse empregada doméstica – ela trabalhou anos como empregada doméstica. Não existe meritocracia nenhuma, não há. Vencer essas condições da minha infância foi muito difícil e muitos amigos meus de infância não conseguiram. A maioria não conseguiu e está no subemprego. Eu fui a primeira pessoa da minha família, na linha matrilinear, que é negra, a fazer um curso superior – eu fui a primeira e única da minha rua inteira. E não foi por falta de esforço dos outros. É um sistema de desiludir crianças mesmo. E de moer adultos. Meus livros falam também disso porque a gente, como coletividade, não deveria deixar ninguém para trás.
Elisabeth Bishop, FLIP e a falta de pudor
Registre-se que o nome dela como homenageada foi alardeado em outubro, pelo jornalista Ancelmo Gois. Analiso que significa um alinhamento da FLIP 2020 ao Brasil de 2019, que é o Brasil da ameaça semanal do AI5, que é o Brasil que tem um imbecil em cada Ministério e Secretaria do Governo Federal chamando golpe e ditadura de revolução. Acho que por trás de toda a argumentação de qualidade literária ou xenofobia ou censura neste caso (não é essa a discussão, mas querem fingir que é) está a falta de pudor. Neste momento gravíssimo que o país atravessa, em que as forças em combate são civilização ou barbárie, ditadura ou democracia, escolher qualquer nome de escritor ligado ao elogio de processos não democráticos é uma indecência. É histórico que parte da intelectualidade – ligada ao projeto de poder da elite – legitima esse poder com a sua capacidade de fazer torções lógicas, mas muitas e muitos não engolem esse discurso. Aliás, quanto à FLIP 2020 nem adiantou alardear as simpatias de Bishop, o governo não liberará recursos. Para conseguir recursos deste governo é preciso mais que um fascismo ligth.
Minha poesia nasce do transbordamento
É difícil para a/o poeta avaliar a própria poesia com acerto. A leitura dos outros é que complementa a escrita, porque o leitor é co-autor. É por isso que a leitura de literatura é tão importante, que a democratização do acesso à arte em geral é tão importante. Porque quem lê cria também. E criar é sempre autônomo e coletivo ao mesmo tempo. Minha poesia nasce do transbordamento. Na hora que algo transborda, eu escrevo. Quando ela reverbera no outro, eu sinto que ela passou do individual para o coletivo. Neste sentido, a literatura é também um ato de generosidade.
Vou citar os mortos porque os mortos não se ressentem
Ídolos não tenho, mas tenho admiração e gratidão por artistas que me ensinaram muito; vários, inclusive contemporâneos vivos. Vou citar os mortos porque os mortos não se ressentem (risos): Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana, Bertolt Brecht e Machado de Assis.
Dizer “eu mereço, esse tempo é meu"
Acho que no sentido de que a leitura é algo que nos alimenta sim. É dar algo especial para nós mesmos. Pegar de volta um tempinho que o sistema nos rouba. Todo empregado devia tirar uns minutos do patrão e fazer uma leitura de umas páginas. Tirar de um rico e dar para um pobre. Dizer “eu mereço, esse tempo é meu”.
Sempre haverá os que não se dobram à estupidez
Como eu escrevi em um poema, mesmo não havendo esperanças, agiremos como se houvesse. Devemos enfrentar a estupidez enquanto vivermos, é um compromisso com nossa humanidade. Então, a despeito de tudo, escrevamos. Sempre haverá os que não se dobram à estupidez.
É preciso lembrar os versos de Rimbaud: “Por delicadeza/ perdi minha vida”.
O ataque à produção artística faz parte do projeto obscurantista de país. A arte é capaz de desenvolver o senso crítico, criador e co-criador, a autonomia do sujeito. Os poderosos querem consumidores, inclusive consumidores de fé. Não querem sujeitos autônomos. Há tempos, no Brasil, o pentecostalismo e o neopentecostalismo, mais movimentos afins do catolicismo pretendem derrubar o estado laico, que aqui sempre foi meio capenga, mas é melhor que qualquer fundamentalismo. As igrejas crescem, os cinemas e teatros desaparecem. As concessões de rádio e Tv são dadas a pastores. Agora vemos o aparelhamento do Estado por essa gente. Quando digo “essa gente” estou falando “gente obscurantista”, “gente fascista”, “gente vulgar”, “gente burra”, “gente enrustida”, “gente recalcada” e dos chefes dessa gente estou dizendo “gente má”. Eles são em grande número, e isso preocupa. Deve preocupar. Uma coisa é a liberdade de crença – coisa que negam às religiões de matriz africana – outra coisa é se aproveitar disso para construir um projeto autoritário. E quanto à tolerância, fomos tão tolerantes que eles agora têm bancadas parlamentares e cargos centrais no Executivo. Estão aguardando vaga no Supremo Tribunal Federal. Enquanto isso, recebemos por educação os panfletinhos religiosos na rua. Eu não recebo. E deixo claro o motivo. É preciso lembrar os versos de Rimbaud: “Por delicadeza/ perdi minha vida”.
Faço uma lista de 13 livros
- Encarceramento em massa, Juliana Borges
- Racismo estrutural, Sílvio Almeida
- Torto Arado, Itamar Vieira Junior
- Um exu em Nova York, Cidinha da Silva
- O antiboi, Ricardo Aleixo
- O cometa é um sol que não deu certo, Tadeu Sarmento
- Desnorteio, Paula Fábrio
- Carta à rainha louca, Maria Valéria Resende
- Cloro, Alexandre Vidal Porto
- Todos os abismos convidam para um mergulho, Cinthia Kriemler
- Por cima do mar, Deborah Dornellas
- Mauricéa, Adrienne Myrtes
Poema ou texto dedicado ao momento atual
Vou de Camus, em A peste (tradução de Valerie Rumjanek):
“Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. (…) Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “não vai durar muito, seria idiota.” E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos.”
BOOK
TRAILER | Arraial do Curral del Rei de Adriane Garcia
Editora:::
Conceito
Gênero
::: Poesia
Ano
::: 2019
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Adriane Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da primeira cidade planejada da República, com destaque para as questões de esquecimento e memória.Tendo vivido sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros Fábulas para adulto perder o sono (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Ed. Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018).
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Taciana
Oliveira é
mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada
por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona
memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem
quiser ouvir: Ter
bondade é ter coragem.