por Rebeca Gadelha__
Artista: Reinforced
Minha
avó materna foi uma mulher bonita, cresceu no interior, filha mais
velha de uma família grande. Queria ter estudado, não estudou
“faltou oportunidade”, dizia. Queria ter trabalhado, não
trabalhou — quem empregaria uma mulher naquela época, ainda mais
sem estudo? Casou, mesmo sem querer. Antes de ir para o altar,
arrancou o vestido e disse “Não caso!” as lágrimas da mãe a
convenceram do contrário: o pretendente era bom, um sargentozinho —
mas com chances de promoção — e estava doido de amores por ela.
Era preciso casar. Onde já se viu mulher de família assim, deixando
noivo no altar? Casou. Teve quatro filhas. Vovô adorava as meninas,
principalmente a caçula — mamãe — mas sempre sonhara com um
menino para herdar seu nome, nome de um general alemão. O menino
nunca veio, embora mais tarde viesse a ter netos — três — que
não herdaram seu nome. Não sei o que houve entre vovô e vovó, me
pareceu que era melhor não ter casado. Em certas noites, vovó
gritava, gritava e se debatia, então pegava corria para pegar a arma
e vovô corria também — e choravam, choravam muito, enquanto vovó
apontava o revólver para si e dizia que morreria, que não aguentava
viver nem mais um dia. As meninas assistiam, mudas de lágrimas e
espanto.
Apesar
disso, vovó e vovô continuaram juntos — não era época para
divórcios — vovó não se matou, vovô vendeu a arma e as meninas
cresceram. Descobriu-se que três eram doidas, uma mais doida que as
demais, mas todas eram. Vovó se culpou, vovô também. Vovô se
aposentou e, sem o mar, se afogou em bebida, encheu o pulmão da
fumaça de cigarros. Vovó teve pressão alta, princípio de infarte
e derrame, quase morreu. Mamãe largou tudo para cuidar dela. Vovô,
bêbado, ajoelhou-se ao pé da cama e disse que morreria sem ela, que
não fosse primeiro, mamãe mandou-o embora, que não era hora para
isso. Vovó se recuperou. Os cigarros, a bebida, a amargura, a
tuberculose — ou simplesmente a vida — levaram vovô primeiro: a
família rachou. Dinheiro vale mais que laços. Laços não enchem
barriga, nem compram carro. Vovó se foi sem dizer adeus. Tentou
ligar, não sei porquê, tentou ligar, depois de ter deixado a tia
(que estava de visita) me expulsar da casa de vovô; tentou ligar,
apesar de ter deixado tudo para trás, depois de ter feito um
escarcéu e alegado maus-tratos, mesmo com os médicos atestando que
ela estava bem, ótima, inclusive, para uma mulher de 80 anos.
Assistiu enquanto a filha mais velha pedia curatela, mesmo ainda
estando lúcida — ou era o que os médicos diziam — assistiu
enquanto a mais velha armava um show que envolvia até parentes
distantes, gente que a gente nem lembrava que existia.
Vovô
nunca teria permitido, seu último pedido para nós — aquelas que
ficavam para trás — era para não brigar. Falhamos. Vovô nunca
teria permitido, mas a coragem de vovó se foi no momento em que ela
recolocou aquele vestido.
*Este
é o quarto
texto da série Reminiscências, que narra a tentativa de uma garota
de recuperar parte da história de sua família a fim de compreender
a si mesma. Clique aqui para ler o prólogo
ou aqui
para ler a parte I .
Rebeca
Gadelha
nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na companhia
dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista digital, é
apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem medo de
avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é fígado. Foi
responsável pela diagramação, ilustrações e concepção visual
em Balbúrdia, participa da coletânea Paginário,
publicada pela Editora
Aliás.
Atualmente escreve para as revistas do Medium Ensaios
sobre a Loucura e
Fale
com Elas sob
o pseudônimo de
Jade
.