Ler é um ato político - Christiane Angelotti


por Taciana Oliveira__


O Mirada comemora seu primeiro aniversário entrevistando Christiane Angelotti, fundadora do portal Para Educar, editora e curadora da Revista Gueto. Christiane acredita na leitura como um um instrumento fortalecedor da inclusão social e afirma: Acima de tudo, ler é um ato político. É um despertar. 



Respiramos literatura

A Revista Gueto foi toda idealizada pelo Rodrigo Novaes de Almeida, meu marido. Certo dia ele me chamou e mostrou uma ideia que tinha tido. Eu pensei que fosse um esboço e me surpreendi em ver todo o portal já feito e todo o planejamento da Gueto já construído. Nós funcionamos assim, um compra o sonho do outro e embarca junto e nem é sacrifício, pois respiramos literatura.


A literatura infantojuvenil é a que mais contribui para a formação de leitores

Sou editora antes da Revista Gueto. No meu segmento, literatura infantojuvenil, as editoras mulheres são a maioria. Neste caso, penso que há certo menosprezo por parte de alguns homens que consideram que ocupamos um espaço menor, que eles nos permitiram. E para quem pensa assim creio que, além de machista, é tremendamente ingênuo. Tudo começa ali, na infância. A literatura infantojuvenil é a que mais contribui para a formação de leitores. Quando editamos um livro pensamos em três frentes: no leitor criança, na família e nos educadores e temos que conquistar os três públicos. Além de todas as particularidades que compõem a narrativa e que não são contempladas na literatura voltada ao público adulto. É bem mais complexa nossa função.
Na Gueto edito poucos textos, por pura falta de tempo. E faço a curadoria, convido alguns autores que admiro o trabalho ou venho a conhecer e gostar. Temos a preocupação de publicar homens e mulheres, igualmente, e posso dizer que há escritoras e poetas fantásticas na literatura brasileira contemporânea, inclusive levando prêmios de prestígio. É uma realidade que mudou nos últimos anos, com o surgimento de coletivos e de grupos espalhados por todo o país, como o Leia Mulheres. Além disso, há inúmeras revistas literárias, hoje, com mulheres editando.

Para Educar

Mal consigo me lembrar de quando não trabalhava com conteúdo para pais e educadores e crianças. Muita gente não sabe, mas minha primeira graduação é na área da saúde, em Fonoaudiologia, com pós-graduação em Neurologia. Trabalhei em hospitais com pacientes com comprometimento neurológicos, na maioria adultos. Quando me tornei mãe mergulhei mais no universo infantil. Na época, há vinte anos, montei um site educativo para compartilhar dicas de livros, músicas, conteúdos diversos relacionados à infância que não encontrava com facilidade. Nessa época montar um site era algo raro, nem blogues existiam muitos. Então, meio que por acaso acabei escrevendo conteúdos sobre infância na internet, usando minha experiência também como fonoaudióloga, e passei a ser procurada por pais e professores. Minha relação com esse público nasceu ali. De lá pra cá, fui aprendendo muitas coisas, fiz alguns cursos, estudei e me especializei em literatura infantojuvenil e infância. Acabei entrando para a área editorial. O Para Educar surgiu depois de eu ficar uns três anos sem site na internet, tempo que senti muita falta dessa comunicação e compartilhamento com o público leitor. Então, um pouco antes de montarmos a revista gueto, um mês precisamente, criei o Para Educar.


Nem todo editor produz conteúdo ou é escritor de literatura 
Produzir conteúdo, eu produziria para qualquer público. Como trabalho com infância há muitos anos flui mais naturalmente. O trabalho de edição de texto é diferente, nem todo editor produz conteúdo ou é escritor de literatura, mas todos são leitores, especialmente os editores de literatura. Penso que quando somos leitores nosso trânsito em produção de conteúdo é mais fácil, embora sempre dê trabalho.

Aprendi, e aprendo sempre

Vivemos em uma sociedade que acentua e promove diariamente a desigualdade. Fico extremamente feliz quando produzo um conteúdo, compartilho alguma prática que tomei conhecimento e isso é usado por exemplo em uma escola há quilômetros de distância de onde vivo, numa comunidade quilombola ou em uma comunidade indígena. Aprendi, e aprendo sempre, tanto com essas trocas. Se você me perguntar duas coisas que me deixam extremamente feliz na minha vida profissional é, uma, saber que contribuo de alguma forma com um educador, seja ele pai ou professor, que isso gera algo positivo na vida de crianças e adolescentes e, outra, é quando escrevo literatura.

O livro que me ajudou a atravessar alguns períodos turbulentos 

Pessoas importantes na minha formação existem muitas. Diria que a Dolores Prades, editora de literatura infantojuvenil, é uma delas. Paulo Freire e todos os autores os quais leio e me identifico. Sempre aprendo algo que me transforma. Minha vida como leitora começou (bem tarde, infelizmente) com Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Erico Veríssimo e Hans Christian Andersen. Mas eu quis escrever literatura quando li Peter Pan e Wendy, de James Barrie. Peter Pan foi o livro que me ajudou a atravessar alguns períodos turbulentos.
Ídolos literários acho que não tenho. Tenho autores que admiro muito a escrita. Entre eles, Eduardo Galeano, Lygia Fagundes Teles, Leon Tolstói, Guimarães Rosa, Clarice Lispector.

Acima de tudo, ler é um ato político

Penso que a leitura é um instrumento de inclusão. À medida que lemos, passamos a conhecer e valorizar mais outras culturas e a nossa própria cultura, a valorizar e respeitar experiências de vida, diferentes visões de mundo. Nos permitimos refletir mais e questionar. Acima de tudo, ler é um ato político. É um despertar. Por isso é também uma forma de dominação social a manutenção dos altos índices de analfabetismo funcional e as tímidas ações em prol da formação de leitores, que estão sempre atreladas uma a outra.

Um ato necessário

Sem esperança a gente nem se levantaria da cama, ainda menos traríamos a literatura como ferramenta de transformação do mundo. Como coloquei na pergunta anterior, ler é, acima de tudo, um ato político. E nos dias obscurantistas de hoje, mais do que nunca, um ato necessário.

Os editores independentes estão mais próximos dos seus autores

O crescimento das pequenas editoras democratizou mais as publicações. Os editores independentes estão mais próximos dos seus autores. Estão também mais abertos para apostar em novos autores e a arriscar com temas mais diversificados. Essas editoras vêm participando hoje de muitos eventos literários e feiras pelo país, inclusive naqueles em que grandes editoras não dão muita atenção e, com isso, estão mais próximas também do público leitor e até de conquistar novos públicos.


Topa fazer uma lista de 10 livros que provoquem/acordem os leitores? Uma lista pensando no público da Revista Gueto e outra para o universo infantojuvenil.

É difícil fazer listas, sempre deixamos algo importante de fora. Vou compartilhar livros que foram importantes para mim, lembrando que uma escolha assim é sempre permeada por nossa subjetividade.



- A Revolução dos Bichos e 1984, de George Orwell
- Fahrenheit 451, de Ray Bradbury
- Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf
- As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano
- O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë
- Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago
- Os miseráveis, de Victor Hugo
- O conto da Aia, de Margaret Atwood
- O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas 







De autores contemporâneos temos uma leva de autores incríveis, é difícil listar, mas quem acompanha a Revista Gueto pode ter um bom panorama da literatura contemporânea.

De livros infantojuvenis:

- Peter Pan e Wendy, de James Barrie
- O Pequeno Príncipe, de Antoine Saint-Exupéry
- As novas roupas do imperador, de Hans Christian Andersen
- A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga (e absolutamente todos os livros dela)
- Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato
- Píppi Meialonga, de Astrid Lindgren (os três livros)
- O Jardim Secreto, de Frances Hodgson Burnett
- Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár
- O reizinho mandão, de Ruth Rocha
- Matilda, de Roald Dahl






Um poema ou texto que você dedicaria ao momento atual do país

São tantos... mas o que me veio na lembrança agora foi este:

Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores; 
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;   
Porém há os que lutam toda a vida 
Estes são os imprescindíveis.

Bertolt Brecht



________________________________________


Christiane Angelotti é escritora, fonoaudióloga, especialista em Neurologia, editora de livros de literatura, literatura infantojuvenil e educação. Desde 2002 trabalha com conteúdo para sites infantis. Tem textos publicados em livros didáticos e sites de educação. Produtora de conteúdo, pesquisadora em infância e educação, fundadora do porta Para Educar  e Revista Gueto.



____________________




*** Portal Para Educar: http://www.paraeducar.com.br/ 
*** Revista Gueto:  https://revistagueto.com/






                                                                 






                                                            __________

Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.