Por
Adriane Garcia____
Alguns
livros, para além de muito bons, são importantes. É o caso de Um
exu em Nova York, livro de contos de Cidinha
da Silva. O livro é composto por 19 contos. Já na
abertura, em I have shoes for you, Cidinha
nos dá um dos elementos que irão perpassar muitas das histórias: a
leitura dos sinais, o exercício da intuição, a ligação
espiritual de todas as coisas.
Esse
enfoque, totalmente em consonância com a cosmovisão africana, que é
holística e compreende tanto o sagrado quanto o profano no mesmo
espaço, será um motor para as narrativas. No conto em questão, a
protagonista precisou se esforçar um pouco mais para compreender por
que razão uma mulher pobre e desconhecida, que lhe ganhou uma
esmola, estava oferecendo a ela sapatos. “Exu matou um pássaro
ontem com a pedra que jogou hoje” marca o entendimento profundo
da ação: proteção e caminho.
Imagens
inusitadas, prenhes de elementos mágicos,
saltam dos contos de Cidinha da Silva. Em O homem da
meia-noite, é delicioso perceber Exu no homem que descansava a
perna estropiada numa grade. Rua erma, noite, há todo um clima para
o medo e o mistério. A mulher pede proteção: Laroiê! E
uma surpresa se revelará para a leitora, o leitor. Em
Metal-metal, os princípios da cura africanos se encontram com a
medicina chinesa: não à toa, essas curas pressupõem o ser como
força, como encadeamento de energias vitais que podem ficar livres
ou obstruídas. É saber ancestral africano a manipulação das
energias, pelos elementos naturais (animais, minerais, vegetais),
para alcançar o bem-estar da comunidade. Exu, como princípio de
movimento que é, Rei do Corpo, também circula as vias internas.
Se
a sabedoria herdeira do culto aos orixás e divindades africanas
(iorubá e angola-congo) encontra personagens e cenários neste Um
exu em Nova York, em tudo a autora trata da diáspora e dos seus
efeitos. A história das pessoas africanas no Brasil é marcada pela
violência desde sempre. Sequestrados de seu lugar, sem direito
sequer ao próprio nome, as africanas, os africanos e seus
descendentes tiveram que reinventar um mundo dentro de um sistema
opressor e de hegemonia branco-macho-hetero-católica. Essa
reinvenção – calcada na cultura, saberes que traziam, na ligação
com a ancestralidade, nas características comunitárias de viver com
o diverso – tornou-se um caso exemplar de resistência de um povo.
Em Kotinha, a autora detalha a invasão de um templo de
candomblé por evangélicos. Do lado dos criminosos, há um deus
capitalista da teologia da prosperidade; do lado dos terreiros, cuja
existência, por si só, já é resistência, os mundos e os tempos
“Sasa” e “Zamani” se juntam.
A
cosmovisão africana destaca o passado e o presente. Esses dois
tempos se intercalam. “Zamani” é o tempo mítico, o tempo dos
ancestrais. Os tempos se comunicam de forma não linear. A morte, por
exemplo, na cultura iorubá, é apenas retorno da matéria ao seu
lugar primordial. No conto Jangada é pau que boia, a matéria
do homem se entrega às águas. No conto Sábado, a narradora
encontra um homem que, à beira de um lago, oferta flores a Kissimbi
(do panteão angola-congo) pelo nascimento do filho, mas guarda uma
tristeza em relação à morte, apesar de compreendê-la.
Não
tendo a atenção centrada no futuro, a cosmovisão africana não
abriga escatologias como o céu ou o inferno cristãos; nem mesmo o
conceito de culpa ou pecado. Em filosofias cuja práxis se dá no
bem-estar da comunidade, a atenção se foca sobre o ensinamento dos
anciãos e ancestrais, na responsabilidade do indivíduo diante do
grupo. Os ritos fúnebres selam a compreensão e aumentam a força do
“Zamani”, pois transfere a força vital de um tempo (presente)
para outro (passado), assim como os nascimentos aumentam a força do
“Sasa”. É uma filosofia do equilíbrio. Uma filosofia ecológica.
O
passado não é estanque, é um lugar de ensinamento e memória que
conversa com o presente. O ancião e o ancestral possuem lugar de
destaque. No conto O velho e a moça, a jovem pergunta ao
velho (Ayrá e Agodô), que lacrimeja todo o tempo, pois traz nos
olhos “a memória das águas”, se deve contar o vivido. Ao
ouvir a resposta “conte o que fizeste dele, minha filha”, quer
saber se bastaria. O velho então, Xangô, responde: “Se basta
não sei. Aviva”.
Avivar,
tornar mais vivo, encher de ânimo, de alma, avigorar-se. A palavra
em Cidinha da Silva surge também como grito sobre essa
plenitude negada pelo racismo e pela necropolítica. Em Maria
Isabel, Cidinha da Silva expõe uma das duras realidades
do percurso de uma pessoa negra no Brasil: a vida curta, quase sempre
interrompida/ceifada pela violência social e racista.
A personagem narradora está morta e, fato raro, morreu de morte
natural. No mesmo conto, a falácia da meritocracia que, se mantém
apenas os brancos nos cargos de poder, é por não haver
oportunidades minimamente viáveis para os negros.
Em
Válvulas, há espaço para a desilusão amorosa e o assédio
do pastor da igreja. A sorte foi existir Iansã e seus ventos. As
personagens de Cidinha da Silva sabem ler objetos que caem do
nada e se quebram. Também uma bonita história de amor em No
balanço do teu mar. Em Lua cheia, filhos crescidos, casal
mais velho, uma das lições do machismo: hora de o homem trocar de
mulher. Nesse conto, de condução de ritmo excelente, mais uma vez o
elemento mágico assume importante papel, quando a mulher preterida
vê o marido fazendo para a rival coisas que jamais fez para ela. No
final, temos a sensação de ter ouvido uma daquelas histórias de
justiça – ou vingança – que as avós do mundo poderiam nos
contar.
Marina
traz uma homenagem à escritora Natália Borges Polesso. É um
conto sobre o desejo de ser amada e sobre o acaso, sobre a
fragilidade da vida humana. Sonho e realidade se misturam, ficando
para o leitor a condução do final. Em Farrina, um pouco do
retrato da diáspora como experiência comum das pessoas negras no
mundo inteiro. O conto se passa em Nova York e mostra o
reconhecimento dos negros entre si. Tanto lá, quanto cá, as marcas
no corpo e o descaso com as políticas públicas para a população
afrodescendente.
É
interessante notar no conto Mameto, a ausência do preconceito
contra o diferente, no caso, o envolvimento amoroso da zeladora da
Casa com uma das frequentadoras (o dilema que aparece na personagem é
ético, é ausente a questão do pecado ligada à orientação
sexual). A comunidade aceita a vida conjugal das duas mulheres na
medida em que não há mal algum para a comunidade, ao contrário, as
duas mulheres vivem harmonicamente. Os orixás aparecem não para
julgar, mas para celebrar o novo encontro e a alegria de uma
existência que agora se tornara mais plena e prazerosa. É muito
bonito o conto. E é sempre trazendo o movimento que Exu aparece.
O
manda-chuva é um conto impactante. Poucas vezes o assunto do
reprodutor e da reprodutora sexuais são tratados na literatura
brasileira. Assunto da máxima importância, o silenciamento sobre
ele também esconde os fundamentos da cultura do estupro no país. O
manda-chuva conta a história de um ser humano escravizado
obrigado a fazer filhos em meninas que não queriam a relação
sexual, muito menos poderiam ficar com seus filhos, feitos para a
venda. “Chegou a fazer 60 filhos num ano, entre as negras da
fazenda e outras da região cujos donos o alugavam”. A história
é de uma violência máxima e absurda, que Cidinha da Silva
conduz de forma primorosa, deixando claro que não se viveria
tamanhos horrores sem resistir/reagir de várias formas.
No
conto Akiro Oba Ye!, jovens moradores da Vila das Alterosas
convivem com a especulação imobiliária que os expulsa e o tráfico
que perturba suas vidas. De maciça maioria trabalhadora, a favela
convive com o grau máximo do descaso político da República. Rosa
de Matamba, Mary de Anya, Robério de Ogunjá, Áurea de Obasi,
Eduardo Ajagunã e Emerson Xoroquê ao longo do conto serão
transformados, pela linguagem, nas divindades que representam. O
conto é fascinante também pela forma.
Em
Dona Zezé, conto delicioso, aprenderemos que, com
perspicácia, é possível enganar a Deus; assim como aprenderemos em
Tambor mineiro que há quatro batidas para o tambor e que ai
daquele que toca o objeto sagrado sem permissão.
Cidinha
da Silva encerra seu Um exu em Nova York com o Sá
Rainha. A anciã líder que se paramenta pela última vez para
morrer. Sua dor, resistência e sua despedida emocionantes não
poderiam fechar melhor um livro que grita a dignidade das mulheres e
homens que, por sua existência, quando tudo lhes é contrário, são
o próprio milagre deste país.
Exu
nos traz à encruzilhada e continua nos perguntando qual caminho
vamos seguir.
“Todos
limpos, sem furos nas roupas, sem manchas de sangue. Surpresos ao
reencontrá-la ali no lugar onde vagam. Sá Rainha chora e agradece à
Senhora do Rosário. Passa a mão pelo rosto de cada um dos filhos,
beija-os. Fala da saudade. O povo vai se juntando. Cerca a Rainha, os
meninos. Tá caindo fulô/ tá caindo fulô!/ Lá no céu/ cá na
terra/ oi lerê, tá caindo fulô!.
Sá
Rainha sai do abraço dos filhos. Afasta-os, carinhosa. Abaixa-se e
risca o chão com um caco de telha. Pontos que ninguém ali sabe
interpretar. Coloca o bastão no chão. Chora baixinho ao tirar a
coroa, deposita-a na terra.
Os
filhos vão desaparecendo. O povo também. Ela fica sozinha com suas
insígnias de realeza depostas. Aos poucos, Sá Rainha também some
no tempo. Restam o bastão e a coroa à espera de alguém.
Êh
Tempo! Êh Tempo! Zaratempô! Êh Tempo! Êh Tempo! Zaratempô! Êh
Tempo! Êh Tempo! Zaratempô!” (p. 73)
***
Um
exu em Nova York
Cidinha
da Silva
Contos
Pallas, 2019
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Cidinha
da Silva,
mineira
de Belo Horizonte. Escreveu
Racismo no Brasil e afetos correlatos (2013)
e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas
públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no
Brasil (2014),
entre
outros.
Autora
das peças teatrais
Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas, encenada pelo
grupo "Os Crespos", em
2013,
e Os coloridos, em
2015.
É
editora da Fanpage
cidinhadasilvaescritora
e
colunista dos portais
Forum,
Geledés
e Diário
do Centro do Mundo.
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Adriane
Garcia nasceu em
Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação
em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a
desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a
construção da primeira cidade planejada da República, com destaque
para as questões de esquecimento e memória.Tendo vivido sempre na
periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens
e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros
Fábulas para adulto perder o sono (vencedor
do Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca
do Paraná), O
nome do mundo (ed.
Armazém da Cultura, 2014),
Só, com peixes (Ed.
Confraria do Vento, 2015),
Garrafas ao mar (ed.
Penalux, 2018).