BUDEGAS, mais que vendinhas, elos! - Entrevista

por Taciana Oliveira__

Um grupo de artistas cearenses se conectaram nos diversos formatos audiovisuais para recriar e apresentar o universo sonoro/visual das bodegas. Seguindo a narrativa que bodegas são muito mais do que espaços comerciais, mas também “caixas de histórias” e pontos de lazer para moradores das comunidades, o trabalho expõe não apenas a realidade dos personagens fotografados, mas representa o contexto afetivo, a identidade social de cada artista. O resultado desse encontro foi apresentado no último mês de dezembro de 2019, no Carnaúba Cultural em FortalezaA exposição BUDEGAS, mais que vendinhas, elos! traz a atmosfera física e sonora de espaços nascedouros de encontros periféricos, aglutinadores de memórias e vínculos afetivos.  Apresentamos na edição desse mês do Mirada uma série com publicações de trabalhos que compõem a exposição. Alguns dos criadores do projeto toparam participar de uma entrevista, e o nosso bate-papo virtual aprofundou questões sobre cidadania e o fazer artístico como referência de articulação social.  Para acessar fotografias e  intervenções promovidas pelos artistas na exposição, visitem as sessões Corredor Literário e Fotogramas.  Abaixo, segue a entrevista.  A budega está aberta!





1 - Como nasce a proposta de uma exposição multilinguagem, que trabalha elementos fotográficos, vídeo-instalação, textos e revela o percurso periférico de comunidades cearenses?

Karine Araújo - Depois de encontros, cutucadas e inquietações acerca da imagem, aos poucos fomos definindo e nos libertando do "peso" de sempre levar imagens para validar nosso trabalho como profissionais de arte, já que todos têm alguma relação com fotografia e imagem. Alguns, já no início, queriam trabalhar com som, outros vídeo, alguns com textos e outros ainda com instalação. A medida que fomos nos reunindo e Aline Furtado foi nos instigando e cutucando o desenho da exposição, o que queríamos, por que queríamos, etc., foi se fazendo. 

Leo SilvaEu ainda não sei como foi a escolha da proposta da exposição, mas só em remeter a história de espaço, pessoas, conexões, eu acho fantástico. Lá em casa já foi uma budega entre 2004/5, passamos por um perrengue e a budega era o que ajudava. Além disso, são pontos, locais que nos faz conectar a tudo da Comunidade, é o tio, a tia, os meninos e os amigos/as que temos na vida.  Na exposição colaborativa fiz uma instalação em vídeo, eu já conhecia o espaço,então logo já pude pensar na estrutura e ideia.  Atualmente pesquiso sobre a minha comunidade, fazendo uma busca sobre a história, gravando e fotografando novamente, algumas a partir de fotografias de arquivos dos próprios moradores. Tá sendo massa essa busca, e quando se voltamos as Bodegas me faz entrar em outro processo da história local. Principalmente porque boa parte das famílias já chegaram a ter uma, também é pequeno comércio que ajuda naquele pedido do “fiado”, a confiança e o conhecimento um do oto (outro) dá certo e assim seguimos. Para esse trajeto conversei com Damião e Dona Rosa  que são pessoas veteranas na comunidade e estiveram vendo e fazendo parte da construção da Comunidade. Na vídeo-instalação traz as falas como se fosse um diálogo de calçada. as perguntas e resposta perpassa rapidamente a história da comunidade até como se dá as suas bodegas, entre a serenidade e seriedade das falas a gente se sente também no espaço, assim, como se estivesse frente a eles. Na exposição as pessoas sentam, botam o fone e escutam/entram/fazem parte das histórias contadas por ela e ele.

Yuri JuatamaNosso contato com a fotografia sempre foi muito forte, somos fotógrafos e fotógrafas que se aventuram em outras linguagens pois só a fotografia não da conta, foi um processo muito curioso, não estava previsto uma exposição multilinguagem, acho que foi inspiração surgida pelo tema.

Emília TeixeiraNasceu no curso Passe Adiante, em um determinado momento do curso a turma se dividiu em grupos, os alunos são de vários coletivos periféricos de Fortaleza que já desenvolvem trabalhos relacionados com a imagem, uma galera do audiovisual e fotografia, publico alvo do curso, era um momento do curso que a gente ia produzir algo, uma parte da turma foi produzir roteiros, outras produzir curtas e nós da fotografia essa exposição. Inicialmente não tinha um desenho de como seria essa exposição, a gente saiu com a ideia que tinha que fotografar budegas, na apresentação de resultados em encontros semanais que tínhamos a galera foi chegando com suas ideias. E aí a gente foi tendo ideia e dimensão que a exposição teria esse formato que foi apresentado. Quanto ao tema, a gente buscou um tema que atravesse o cotidiano das periferias, e aí a Bodega foi escolhida.


Catálogo da Exposição

2 - O nome da exposição nos remete a memória e a realidades periféricas. BUDEGAS, mais que vendinhas, elos! traduz a memória e a geografia afetiva de vocês? 

Karine Araújo - Não respondo pelas memórias afetivas de todos, mas as budegas são esses locais onde praticamente tudo acontece, onde todos os vizinhos - da casa ao lado ou da rua ao lado - se encontram. Na budega que também é mercearia compramos do pastel ao remédio ou chá e até pedimos conselho sobre qual erva é melhor para dor de barriga. No bar que também é budega a compra de uma bebida acaba sendo o momento de desabafo, fofoca e conselho entre quem sofre, bebe, compra, desaprova os barracos, etc. 

Leo Silva - Tem muito da infância também, quando a gente é mais novo, vivíamos perturbando nossos pais para comprar algo pra gente, acho que boa parte na sua infância passou por isso. Além do mais é ela que gera o comércio em nossas Comunidades. No Santa Filomena umas budegas viraram comércio, e algumas um grande mercantil. Começa pequeno, cresce e ainda é o "point" da Comunidade para a compra dos mantimentos para casa. Além disso estamos além da "perimetral" que é umas das avenidas que roda “parte” toda a cidade, podemos dizer que estamos além/após a Perimetral. E pensar esse espaço como um processo de construção coletiva, pois é a gente pela a gente, pouca atuação da prefeitura e do estado. Boa parte das otas (outras)  vem a partir das reivindicações, manifestações feitas pela a gente mesmo.

Yuri Juatama - Sem dúvidas, nosso trabalho todo gira em torno da territorialidade, pois falamos sempre do nosso lugar, mostramos um lado bonito e real da quebrada. "Budega" é a cara da periferia.

Emília Teixeira - Nossa, demais. Eu sou neta e filho de bodegueiros. E sempre me encanto com as budegas que vejo por aí, elas tem a mesma estrutura, mas a personalidade de cada budegueiro é expressa na budega, na forma como é disposta as mercadorias, os tipos de mercadoria que tem. Onde eu ando eu fico reparando nas budegas que cruzam meu caminho.

3 - Em tempos de censura e boicotes a trabalhos artísticos, um Coletivo é uma saída para a resistência e defesa de identidades?

Karine Araújo - Os Coletivos, de hoje, são resquícios de todas as movimentações que outros grupos fizeram (hip-hop, movimento negro, associações de bairros, etc) e ainda fazem. Por vivermos em situação de exclusão, até entre nós, e uma quase eterna procura por um grupo, nos fazermos coletivos é uma das saídas que encontramos para estarmos juntas e juntos. Nos fortalecendo no que for possível, mas também, nos atentando a nossa individualidade. Já que um todo é feito por partes.

Leo Silva -  Nos nossos trabalhos alguns de nós, no caso, tem o lance de expor através de varal na própria comunidade, levando de volta aquela imagem para aquele local, para aquela pessoa. Quando chegamos em otos (outros) espaços, seja ela qual for, depende muito de como se da a gente ou o nosso interesse nesses locais. Se pensarmos em espaços “grandes” a panela reina, e não é só em termo de censura, mas de tudo girar apenas pra um certo grupo, creio que isso não é só por aqui. Dentro desses processos, acho que depende muito, muito mesmo de cada um da gente, dos nossos interesses… Do quê? Quem é? Para quem? E o porque dessas imagens que fazemos. Através de nossa coletividade que vez o ota (outra) a gente produz algo ali no PERIGRAFIA, temos conseguido, bem pouco estar em otos (outros) espaços coletivamente. 

Yuri Juatama  -  Ser coletivo não é fácil, penso que não existe uma regra, para algumas pessoas funciona muito bem estar em coletivo, para outras não. Levamos a arte em uma perspectiva mais humana, repeito pelo outro é a base, para nós não existe arte pela arte.

Catálogo da Exposição


4 - Como aconteceu o encontro de vocês. De que forma o coletivo começa a atuar na produção de manifestações artísticas dentro do espaço social de vocês.

Karine Araújo  -  Nossos encontros se dão de forma aleatória. Um curso, um projeto, uma praia, uma reunião, uma exposição… Qualquer local, qualquer momento é motivo para encontros, convites para projetos, atualizar contatos e abraçar. Nesse caso, para essa exposição, nossos encontros foram durante o projeto Passadiante. Mas para além do projeto, fomos nos encontrando como dava e trocando ideias a partir de nossas vivências e experiências. As comunidades, favelas e conjuntos em que fazemos parte historicamente não estão dentro de "grandes" espaços voltados para arte e cultura. Então abrimos caminhos de diferentes formas: fazemos ações nas ruas, praças, budegas, escolas, praias, associações e também dentro de instituições que estão tanto dentro dos territórios de periferia como fora.

Leo Silva - Através duma “ponte” formação/curso. Creio que no final acabamos mais indo para estar em contato, era os únicos momentos que estávamos juntos, era nessas atividades e pensar que esse espaço mesmo que com diversos processos durante essa trajetória, reverberou cada vez mais essa conexão que a gente precisava. Não que tenhamos que estar em algum curso pra se encontrar, devidos aos corres de cada um, este, foi um dos que conseguimos nos unir para estar conversando sobre ideias, entretanto, observando, pesquisando e produzindo. Nesse mesmo ano, lançamos uma fotozine, que foi lançada no Dia Mundial da Fotografia. Estar no mesmo espaço e agora na mesma exposição, é massa, agora é levar para cada local onde se encontra essas pessoas. 

Yuri Juatama  -  A exposição foi colaborativa, vários coletivos participaram, inclusive algumas pessoas transitam em mais de um. O fato de ter sido uma exposição financiada nos ajudou a tornar esse projeto realidade. Por isso acredito na importância dos editais para os coletivos periféricos.

Emília Teixeira -  Algumas pessoas do curso eu já conhecia , mas ainda não tinha tido a oportunidade de desenvolver e produzir alguma coisa . Eu sou do Coletivo Pode Crer, que atua aqui nas Goiabeiras desde 2012 com fotografia, audiovisual e cineclubismo. E nosso trampo já é bem nessa linha de territorialidade, identidade e território. Nossos trampos são feitos e distribuídos aqui no nosso bairro. Nessa exposição eu decidi me desafiar e partir pra outro território, o Pirambu, uma budega borracharia me chamava a atenção quando eu passava no ônibus na Rua Nossa Senhora das Graças.

Catálogo   da Exposição


5 - O que revela pra cada um de vocês a montagem da exposição ? É possível avaliar transformações além do conceito artístico do trabalho individual?

Karine Araújo  - Pra mim, a montagem foi um momento atribulado onde pouco pude estar presente. E ver o quanto a galera tava instigada, preocupada e cheia de afeto, me afetou. Um indivíduo faz parte de um todo, onde há várias referências, pergunto: quais referências vêm a nossa mente quando escutamos algo sobre favela e periferia? Um trabalho individual de um corpo periférico e marginalizado deve ser mais que conceitos artísticos. 

Leo Silva - Trabalhamos muito com imagem, e pensar além disso, de pensar/pesquisar otos (outros) elementos nos coloca em otos (outros) processos de construção. Tanto eu como algumas pessoas que compõem essa exposição já pensava em outras linguagens para acompanhar essas imagens, ou oto (outro) modo de fazer a imagem. Acho que Aline Furtado foi fundamental para ajudar nesse processo de pensar além da imagem ou melhor, transformar o espaço numa Imagem. A exposição é multilinguagem, tem foto, tem áudio, tem imagem em texto, tem vídeo, tem uma budega montada entre a exposição. O espaço também, ganhou toda uma estrutura. Creio que cada um de nós, que se encontra vez o ota (outra), ou se encontra em diversas correrias sem muito tempo pra conversar, cresceu muito... Pensar além da imagem ou ser a própria imagem também. Estar nesse processo, tem uma questão importante que é unir pessoas/amigas/os que a tempos não se viam, que pouco conseguiam se encontrar. E do “nada” estar fazendo essa exposição sobre espaços afetivos que se encontram em nossas comunidades.

Yuri Juatama  - O processo todo é rico, penso que a juventude reunida cria um conhecimento próprio, foi lindo ver tantas pessoas queridas consumindo arte e espalhando afetos. vivemos em uma realidade dura, desigual e momentos como esses nos deslocam disso, nos levam para um outro lugar onde podemos reexistir.

Emília Teixeira -  Revelou um estreitamento de relações, de aproximações e futuras possibilidades de parcerias em trampos que possam surgir.


Catálogo da Exposição

*Budegas é um trabalho de conclusão do Curso Passadiante - Imagens de Decolonização, realizado pelo Instituto Água Boa Cultural e Marrevolto Produções e apoiado pelo Edital de Cinema e Vídeo de 2016 da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará.

FICHA TÉCNICA

Expositores: Emilia Teixeira, Gustavo Costa, Karine Araújo, Joyse S. Vidal, Júnior Cavalcante, Leo Silva, Lucas Barbosa, Lucianna Silveira e Yuri Juatama.
Curadoria: Aline Furtado
Produção: Emília Teixeira
Orientação de desenho sonoro: Mike Dutra

Onde aconteceu a exposição:

Carnaúba Cultural (Rua Instituto do Ceará, 164 – Benfica)

Os entrevistados

*Karine Araújo é fotógrafa, iniciou seus estudos em fotografia em 2016 e, para além de fazer imagens, também busca discutir as questões envolvidas, desde referências a responsabilidade da imagem (estática ou em movimento) e de quem a faz.

*Leo Silva é fotógrafo, escritor e morador da Comunidade do Santa Filomena desde que nasceu. Já fez duas exposições referente a seus trajetos: Simples-Cidade Simplicidade, que traz nas imagens boa parte das comunidades que compõe o Jangurussu, e Meninos de Deus, referente ao grupo de futebol da comunidade. Participou como co-autor, através de suas fotografias, do livro SARAL #2 com Talles Azigon, tem escritas publicadas no e-book Vozes do Jangu e no livro Poetas de Lugar Nenhum - Sarau da B1, e escritas publicadas em sites e blogs.


*Yuri Juatama iniciou seus estudos com fotografia em 2016, passou pelas principais instituições de formação da cidade, Rede Cuca, Porto Iracema das Artes, Centro Cultural do Bom Jardim e hoje é aluno do Curso de Realização em Audiovisual na Vila das Artes. Em 2017 começou a estudar audiovisual e cinema, até aqui participou de 08 curtas- metragens. Teve contato com a fotografia autoral somente em 2018, participou de algumas exposições coletivas e individuais. Além do trabalho artístico, Yuri Juatama desenvolve um trabalho social na Serrinha no qual possui aproximação com os movimentos sociais e culturais do bairro.

*Emília Teixeira, neta e filha de bodegueiros, é jornalista que não é muito amiga das palavras, mas tem estreita relação com as imagens. Desde 2012 atua com o Coletivo Pode Crer no bairro das Goiabeiras, desenvolvendo ações culturais ligadas a fotografia, audiovisual e cineclubismo. Fotógrafa experimental, atualmente realiza uma pesquisa com os Jangadeiros da Costa Oeste de Fortaleza. Realizou e produziu duas Exposições fotográficas - É história de Pescador e Budega do Louro. No projeto cineclubista Cine Invazão 2012-2018, já desempenhou funções de fotógrafa, assessora de imprensa e produtora. Foi Assistente de Direção e Assessora de Imprensa no Curta Ficção Duas Avenidas, Produtora e Diretora de arte no Curta-metragem Momento, Vício e Boa Sorte – MVBS. Proponente, fotógrafa e produtora do Laboratório de Criação CCBJ 2018 (Linguagem Fotografia).





Catálogo da Exposição - Lucas é responsável pela captação e sonorização da exposição

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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.