por
Tadeu Sarmento__
A relação entre História e Literatura não é nova, e a medida em que a primeira abre mão da imaginação em favor da objetividade e, a segunda, colhe o que foi desperdiçado pelo historiador para encher suas narrativas com a riqueza de detalhes, continua motivo de controvérsias. Para um escritor, o risco de pintar um grande painel histórico onde colocar seus personagens é justamente o risco de desaparecer atrás da miríade dos atos e dos acontecimentos. Mas isso não parece assustar Raimundo Carrero que, em sua profunda e corrosiva epopeia (repleta de crítica social) sobre a elite nordestina em absoluta decadência, elege a escrita como principal possibilidade de enriquecimento da História, a partir dos detalhes que ela ignorou no quadro geral de suas explicações totalizantes.
A tetralogia Condenados à vida (lançada em um belíssimo trabalho da CEPE Editora) é a edição definitiva desse esforço, e reúne os quatro romances de Raimundo Carrero, cuja espinha dorsal é o testemunho da ruína da família do patriarca Ernesto Cavalcante do Rego. A edição é constituída pelos livros Maçã agreste (1989), Somos pedras que se consomem (1995), O amor não tem bons sentimentos (2008) e Tangolomango (2013).
Ainda que não obedeçam a uma ordem cronológica, visto que outras obras atravessaram a produção desses romances, os quatro possuem uma unidade temática, na medida em que constituem um palco para personagens que, interconectados e recorrentes, dão à tetralogia a unidade estrutural necessária: um quadro surpreendente, cruel e visceral, de vidas cujos destinos se entrecruzam graças à habilidade de um autor experimentado.
Foi com Maçã Agreste que o escritor pernambucano inaugurou a saga sobre o clã incestuoso, cujos familiares romperam o mais proibitivo dos tabus para garantir (ou até mesmo acelerar) a própria aniquilação, tendo como pano de fundo, a derrocada da elite nordestina da cana de açúcar frente à industrialização. O sexo praticado sob o mesmo teto sugere a tentativa de manter o núcleo familiar coeso diante das mudanças sociais, refletida em uma pretensa ojeriza de se misturarem com classes “inferiores”.
Da
união infeliz do casal Dolores e Ernesto Cavalcante do Rego,
seguiram-se mais três romances, os quais, apesar de independentes,
atravessam e entrelaçam filhos e irmãos. Sua herança? Pares
nefastos que instigam o leitor a seguir a incestuosa família,
totalmente chafurdada em culpa, ressentimento, loucura e tragédia.
De um livro a outro as personagens quicam, criando pontes
referenciais e novas janelas de entendimento.
Maçã Agreste fala de destruição, sexo e depravação. Nessas páginas, Dolores e Ernesto têm dois filhos: Jeremias e Raquel. Raquel tem relações sexuais com o pai e Carrero sugere (do ponto de vista de Ernesto) que há algo lascivo entre mãe e filho, entre Dolores e Jeremias. A consanguinidade de Jeremias seria a expressão mais pura desse mundo arruinado. Mas, ainda que esteja imerso em um destino de desencantamento e angústia, Jeremias dá a impressão de não querer sair dele, como se o merecesse, ou como se, ao perambular pelas sarjetas do Recife, a angústia de compartir do sofrimento dos miseráveis deixasse sua dor menor.
Maçã Agreste fala de destruição, sexo e depravação. Nessas páginas, Dolores e Ernesto têm dois filhos: Jeremias e Raquel. Raquel tem relações sexuais com o pai e Carrero sugere (do ponto de vista de Ernesto) que há algo lascivo entre mãe e filho, entre Dolores e Jeremias. A consanguinidade de Jeremias seria a expressão mais pura desse mundo arruinado. Mas, ainda que esteja imerso em um destino de desencantamento e angústia, Jeremias dá a impressão de não querer sair dele, como se o merecesse, ou como se, ao perambular pelas sarjetas do Recife, a angústia de compartir do sofrimento dos miseráveis deixasse sua dor menor.
Carrero
tece essas relações com a maestria e a precisão de um deus
brincando com seu universo. Algumas personagens são restabelecidas
em Somos pedras que se
consomem, acrescentadas
de novas outras, todas resultado de relações incestuosas que se
confirmam no romance de 2007 – O
amor não tem bons sentimentos.
Desse modo, Ernesto e Raquel, pai e filha, fruem do corpo um do outro
sem grandes problemas, enquanto o irmão Jeremias alcunha jocosamente
a irmã de “a Grande Puta”. À essa altura o leitor já reconhece
a semente de uma nova genealogia, que requer outra maneira de abordar
a corrosão que o incesto é capaz de promover em um universo
fechado.
Já
os irmãos, Ísis e Leonardo, de “Somos
pedras que se consomem”,
não se relacionam sexualmente de modo fortuito; logo, o caso
incestuoso não configura um episódio isolado na trama. Ao
contrário, eles formam um casal que, com a chegada do alemão
Siegfried, passa a compor um triângulo amoroso.
Estamos
no terreno do segundo romance da tetralogia, todo construído a
partir das próprias formas como a história é contada, com poemas,
editoriais de jornal, diários e várias citações de autores
nacionais e estrangeiros, que compõem uma trama enredada, no centro
da qual fulgura Siegfried – um alemão obscuro que toma seu lugar
no palco desumano, truculento, sadomasoquista e criminoso da
narrativa, cujo leitmotiv
é a pretensa e tão conhecida ideia de “purificar” a humanidade.
Em Somos Pedras,
Carrero carrega nas cores da violência, enquanto demonstra não
haver um só modo de enxergar a realidade ou interpretar os
acontecimentos. À certa altura, o romance se transforma em uma
espécie de romance de palavras-cruzadas, bem ao estilo Cortázar ou
Milorad Pavitch.
O
turbilhão de citações e informações em Somos
pedras ocorre na
superfície da temporalidade, deslocando-se junto das lembranças e
devaneios de cada personagem e reavendo episódios repetidos de
acordo com novos pontos de vista, em digressões faulknerianas
impecáveis. Leitor declarado de Faulkner, Carrero nunca quis
esconder essa influência e, assim como o uruguaio Juan Carlos
Onetti, lança mão das conquistas formais do autor norte-americano
para recontar a derrocada dessa outrora poderosa família utilizando
o labirinto de personagens, a complexidade de laços familiares, as
descrições obsessivas, como ganhos de força narrativa.
A
narrativa de Somos pedras
abrange e alterna vários
pontos de vista que vão e vem, ricocheteando em todas as páginas.
Com frequência, esse movimento interpolado ganha contornos mais
definidos no uso variado dos laços e ligações intertextuais e
intratextuais (com as referências a Maçã
agreste), na variedade
de vozes protagonistas, na assimilação de fatos e passagens de
cunho histórico, no jogo permutativo entre perversidade e nazismo,
mas, sobretudo, na variada e inovadora proposta de leitura sugerida
pelo autor logo no início: linear ou ziguezagueada.
Mas
a intenção de Carrero não é puramente formal, e sim a de se ver
livre da linearidade das histórias que conta para explorar, também
ou principalmente, os aspectos à primeira vista desconexos que
compõem as tramas paralelas das experiências humanas. Dessa forma,
o autor espera dar mais dramaticidade
à sua cosmogonia de
derrisão e agonia.
Os
acentos tônicos sobre os ideais do nazismo são com frequência
realçados no decorrer do romance por conta da defesa, feita por
Siegfried, do sonho purificador de Hitler. Essa acentuação não é
gratuita, uma vez que um dos cernes da literatura de Carrero é a
vontade de espelhar a violência e a crueldade através das palavras,
como forma de evitar, ou até mesmo inibir, a indiferença social
acerca desses fatos, pela via do choque e do exagero. Daí a grotesca
e caricata defesa de Siegfried servir de mola impulsionadora das
ações dos personagens em Somos
pedras. O estrangeiro
hitlerista não propõe nada novo: apenas o extermínio de moradores
de rua, negros, deficientes físicos e prostitutas. A tara ariana
pela pureza, bem como as distorções e crimes eugênicos dela
decorrentes, são cimentados, sobretudo, por comportamentos sadistas,
como se o autor analisasse, no indivíduo, uma fração especular de
algo maior. É nesse sentido que Siegfried, no auge dos seus
devaneios, espera criar uma sociedade secreta, “sob o símbolo da
cruz, do fogo e da cinza”, para queimar todos os considerados
“indesejáveis”.
No
terceiro livro da tetralogia, “O
amor não tem bons sentimentos”,
Carrero, do alto de seu domínio da técnica narrativa, coloca um
narrador pouco confiável como fiador da história, até o ponto onde
sua personalidade indefinida passa a ser aludida na própria
inconstância da grafia do seu nome (Mateus/Matheus). À essa altura,
o autor joga com a ideia de um duplo dostoievskiano: Mateus/Matheus é
um outro diverso dele mesmo, e com o qual dialoga a todo o momento.
Trata-se de uma cisão, de uma fratura de consciência, que permite
um desdobramento da personalidade em uma manobra de imagens de um
espelho onde a fragmentação do indivíduo reflete, também, a
fragmentação do mundo ao seu redor.
Mais
uma vez estamos diante de indivíduos derrotados economicamente; uma
derrota refletida em crimes, perda de bens materiais e em uma total
pulverização de laços consanguíneos. Com “O
amor”, Carrero retoma
personagens anteriores, estendendo as referências para trás, de
volta à família que começou a ser desenhada em “Maçã
agreste” e que
ressurge também em “Somos
pedras”. A trama parte
da recordação da provável morte de Biba (concebida pelos irmãos
Jeremias e Isís), com que Mateus (filho da relação também
incestuosa entre Jeremias e sua mãe Dolores), procura restaurar seu
passado remoto e recente.
A
tetralogia fecha com Tangolomango e resgata, com tia Guilhermina (que surge em O
amor), outra
perspectiva sobre a família Cavalcante do Rego. Carrero inclusive
amolda a própria linguagem do romance à consciência da personagem,
criando uma escrita semelhante a um diário em terceira pessoa dessa
senhora que, dedicada a criar o sobrinho Matheus, alimenta desejos
reprimidos que irão explodir de vez durante seu encontro com o Galo
da Madrugada (maior bloco de rua do mundo, segundo o Guines).
Lido sob a luz retrospectiva dos três livros anteriores,
Tangolomango parece querer responder a essa pergunta: o peso do passado de fato
determina
o destino dos indivíduos? Ao recorrer a personagens anteriores em
novos espaços onde eles possam se desenvolver mais plenamente,
Carrero parece afirmar que não.
A
tetralogia Condenados
à vida,
por fim, repisa a tese cruel de um amor capaz de justificar todas as
exclusões, colocando, principalmente nos três primeiros romances, a
civilização como o resultado insuperável da queda das famílias
tradicionais. No limite, a tetralogia encerra uma epopeia que canta
com voz áspera o desaparecimento de um mundo para a ascensão de um
novo mundo. E como nenhuma mudança é pacífica, a violência é
pintada sempre um tom acima. O fato é que as personagens da
tetralogia possuem vida
– e em determinado ponto da leitura nos pegamos pensando nelas como
se fossem pessoas de carne e osso. Isso só é possível de ser feito
se o autor decidir se retirar por completo de cena. Em outras
palavras: quanto mais vida têm as personagens, menos o autor é
necessário. Essa é a lição. Isso o que Carrero consegue.
Fotografia: Taciana Oliveira |
**Fonte:
CEPE
Condenados
à vida
Raimundo
Carrero
665
páginas
CEPE
Editora