(desen)laços de família - Rebeca Gadelha


por Rebeca Gadelha


Artista: Palow Nakamura


Não conheci meus avós paternos. Sei que vovô morreu do que pode ter sido câncer, enterrado vivo numa morte duas vezes prematura — isto foi ao final da década de 1980. Vovó morreu mais tarde, em algum momento entre os anos 2000 e 2010, a saúde comprometida por um AVC e pelo Alzheimer. Só a vi uma vez, já o Alzheimer estava estabelecido, a mulher que fora mãe de meu pai, perdida para sempre, seu rosto é uma névoa, não tenho lembranças nem fotos — poderia pedir para as tias, mas já também nem lembro seus nomes. Não sei quantos irmãos e irmãs meu pai teve, quantos se perderam na imensidão do Sertão e quantos chegaram à idade adulta, quantos ainda vivem, também não sei dos primos, sei das lacunas: o que não sei se empilha em questões que não tem resposta.

Meus avós paternos moravam no Sertão Central e vivam da terra. Até a década passada não tinha energia elétrica e até 2015 ainda não tinha água encanada, toda água vinha de caminhões-pipa ou do açude. Também não há escola, nem estrada: as crianças precisam ir para outro distrito, mais próximo do centro da cidade, em paus-de-arara fornecidos pela prefeitura — e se chover muito, nem eles passam. Quando estive lá, em algum ano que não lembro qual, achei que era um lugar bonito, apesar de ser esquecido por deus e pelo estado: de dia o calor nos torra vivos e, de noite, congelamos. Foi nesse ambiente que meus avós viveram, que seus filhos cresceram. Não creio que existam fotos, mas se há, nunca as vi e o homem que é meu pai também nunca teve interesse de me falar da existência delas — ele prefere esquecer, creio. Esquecer que veio do Sertão para a capital num esforço de sair da roça, de não ter de viver da terra ao sabor dos gostos da seca, esquecer que seu pai foi duas vezes e prematuramente morto, que sua mãe se perdeu em algum lugar da própria mente, desfazendo-se aos poucos em uma desconhecida; esquecer da esposa, da filha recém-nascida, da amante, da segunda esposa. Esquecer. Já eu quero lembrar, conhecer, a verdade que me foi negada, preencher lacunas que não sei como e não sei mais nem com que utilidade. Há quem diga que é preciso conhecer o passado para se entender o presente. Há quem diga que o passado morreu. Eu digo que ele ecoa, assombra, persegue — é por isso que escrevo agora, indago o fantasma tendo apenas papel e caneta, procuro suas histórias, a razão por trás de suas assombrações. Se as histórias forem contadas haverá, enfim, paz?


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Rebeca Gadelha nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na companhia dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista digital, é apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem medo de avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é fígado. Foi responsável pela diagramação, ilustrações e concepção visual em Balbúrdia, participa da coletânea Paginário, publicada pela Editora Aliás. Atualmente escreve para as revistas do Medium Ensaios sobre a Loucura e Fale com Elas sob o pseudônimo de Jade .