Memórias de Radiola - Kosmic Blues

por Taciana Oliveira__



Sou bem desorganizada. Posso está errada, mas meus amigos aceitam isso numa boa. Eles são parte dessa desorganização. Na verdade, eles me organizam. Sou uma caixa de memórias. Livros, filmes e vinis me acompanham como uma bússola, uma referência para não perder a lucidez. Minha casa não é uma construção física, um imóvel herdado da família, uma escritura registrada em cartório. Já morei em tanta casa que nem me lembro mais. Não moro com meus pais. Minha casa sou eu.

Há alguns meses a radiola, que ganhei de presente do meu irmão, parou de funcionar. Uma hora dessas resolvo esse problema e compro um daqueles modelos vintage, anunciados nas redes sociais. Voltarei a rotina de ouvir Ella Fitzgerald pela manhã, enquanto faço café e penso no que posso deixar de fazer. Conheço e sou usuária dos serviços de streaming. As playlists seguem meus roteiros de caminhadas pelas ruas de Hellcife. Mas escutar um vinil proporciona um monte de sensações que poucas pessoas irão compreender. Muitos não viveram o ritual de visitar lojas de LPS, de garimpar descobertas e dividir essa alegria. Não conheceram seus melhores amigos emprestando um vinil. E aqui começa a história que quero  contar para vocês.

Em 1989, voltei a morar com meu pai. Eu era vizinha do cinema São Luiz e enlouquecia meu irmão, escutando repetidas vezes um compacto de quatro faixas de Janis Joplin, brinde da saudosa Revista BIZZ, publicação da Editora Abril Cultural. Juntei uns trocados, atravessei a cidade e comprei o álbum póstumo Farewell Song, que vinha com umas das interpretações que mais amo de Janis: One Night Stand. Era uma overdose sonora sem fim.



Meses depois comecei as aulas de natação na UFPE, como prática obrigatória da disciplina de Educação Física para os alunos do primeiro período de todos os cursos da Universidade Federal. Naquelas aulas conheci uma grande amiga que me levou ao encontro de outra grande amiga. Vica, estudante de Psicologia, tocava guitarra e desde sempre tinha uma delicadeza que humanizava uma rocha.
Nos encontramos pela primeira vez nos corredores do CFCH (Centro de Filosofia e Ciências Humanas). Ela me emprestou Enterrada Viva - A Biografia de Janis Joplin, de Myra Friedman e o álbum Kosmic Blues. Com o tempo chegaram em minhas mãos On the road, de Kerouac e Escuta, Zé Ninguém!, de Wilhelm Reich.

Tenho certeza que nossos amigos jamais irão esquecer os acordes e a voz inconfundível de Vica: She said: Hey, honey, take a walk on the wild side. Ela adorava Rita Lee, The Doors, Legião Urbana, Lou Reed, David Bowie... Confundia arrumadinho com dobradinha, jogava vôlei pessimamente, mas seu time sempre ganhava. Não entendia nada de futebol, assistia todas as partidas da seleção brasileira pra gritar: “Gol de Raí!” O irmão do jogador Sócrates era o único que ela lembrava o nome. Quando decidiu fazer mestrado e morar em Campinas, foi me contar a novidade, já sabendo que iríamos nos despedir. Naquela tarde ouvimos 10.000 Maniacs. Falamos do futuro, ficamos emocionadas. Minha vida havia tomado um rumo estranho e esquisito. Mas juramos não perder contato. Vica, fiel a sua condição de delicadeza, sempre me guiou de volta pra casa: Não vou deixar você se afastar. Não aceito isso.



Em 2020, estamos tão distantes. A geografia é ingrata. Ela em Sorocaba. Eu em Recife. Mas sempre nos comunicamos, cobramos de nós, coragem. Aquela coragem que ousamos buscar para defender a nossa identidade. Nunca aceitamos a intolerância, o preconceito. Nossa bandeira é plural. Nossa religião, o afeto.
Outro dia, trocando mensagens, Vica me conta que tinha ouvido uma canção no rádio. Tentava lembrar o nome, ia procurar e retornar. Era Janis, era Kosmic Blues. Hoje, aniversário de Vica, tomei café da manhã e vim escrever esse texto. Ouvi Kosmic Blues nas alturas. Acho que, em Sorocaba, ela também ouviu.  


* para Viviane Mendonça
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*playlist do álbum Kosmic Blues
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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.