Por que calar nossos amores? Poesia homoerótica latina

por Tadeu Sarmento__




À certa altura do sétimo capítulo do romance Maurice, de E.M. Forster, há uma passagem em que, durante a tradução oral de um texto grego antigo, o protagonista homônimo ao título (um estudante de Cambridge em uma Inglaterra recém-saída da era vitoriana), escuta a seguinte advertência do seu professor: “omita {o trecho em questão}: faz referência ao indizível vício grego”.

Considerando o fato de que esse “vício” a que se refere a personagem faça alusão à representação literária de afetos homossexuais na Antiguidade e, tendo em vista que o romance foi escrito dezoito anos após a condenação de Oscar Wilde por sodomia (mas só publicado mais de cinquenta anos depois), é possível intuir, a partir disso, o completo truncamento de informações com que os costumes sexuais dos antigos gregos e romanos têm sido objeto de debates nos círculos sociais contemporâneos.

A antologia Por que calar nossos amores? Poesia homoerótica latina vem preencher essa lacuna de incompreensão, alinhando a erudição dos estudos filológicos (por definição, atentos às relações entre o contexto histórico e as diversas matizes dos textos) com a acessibilidade necessária para alcançar leitores que se encontram fora da especialização universitária.

Os tradutores (muitos deles também poetas, como Raimundo Carvalho e Guilherme Gontijo Flores) se mantiveram alertas à beleza e sonoridade dos poemas, criando as possibilidades formais para que a poesia homoerótica latina soasse bem nos dias de hoje. O fato de as traduções serem obras de poetas é garantia de que uma das preocupações do livro é a de assegurar que esses poemas, que contam milhares de anos de distância de nós, cheguem-nos como produtos estéticos dignos de serem consumidos por nosso paladar moderno.

Mas a obra vai além da preocupação artística, e atravessa, em ordem cronológica, diversas gerações de poetas. Cada poema que compõe a belíssima edição bilíngue é acompanhado pelo seu equivalente em latim e pelos comentários esclarecedores de cada tradutor. Os temas variam, indo desde “o desenvolvimento do desejo amoroso entre os homens” (Tito Lucrécio Caro) até a história de um amor não correspondido entre um pastor e o jovem escravo de seu amigo (Virgílio), passando pelos epigramas erótico-incendiários de Pórcio Licino. Desse modo, poetas mais conhecidos, como Catulo, Horácio, Ovídio e o já citado Virgílio, ombreiam espaço com autores menos conhecidos, com nomes estrambólicos de gladiadores, como Sexto Propércio.

E para além da qualidade literária e histórica da antologia, dois aspectos gerais reforçam a importância do lançamento. O primeiro é sustentado por Raimundo Carvalho, em sua orelha ao livro: a constatação de que os poemas coligidos tratam unicamente do erotismo, sem o recorte específico “homo” ou “hétero”, uma vez que, tanto para o romano antigo quanto para seu modelo literário grego, essa divisão era tanto epistemologicamente sem sentido quanto de efeito ineficaz sobre a estrutura social romana da época.

O segundo, é explicado na apresentação do livro por Guilherme Gontijo Flores: a ressalva de que as chaves de análise da seleção (incluindo aí a divisão supracitada) servem apenas para situar os poemas para seus leitores atuais, uma vez que a ideia de “homossexual como indivíduo que se identifica subjetivamente de acordo com a vida afetiva não aparece nos textos antigos”. Em outras palavras, o que definia socialmente o cidadão de Roma não eram suas preferências sexuais, mas o fato de ser ou não um homem livre.

O livro celebra ainda o encontro de duas civilizações, a grega e a romana, uma vez que o parâmetro literário dos poetas romanos elencados se encontrava na Grécia; e, nas entrelinhas, comemora o ato da leitura como único capaz de cumprir, historicamente, o conhecimento entre culturas distintas e seu correlato papel humanista e civilizatório.

Em um tempo cada vez mais sombrio, no qual a onda conservadora projeta uma grotesca sombra sobre direitos (já conquistados e ainda por conquistar) de grupos opostos à construção heteronormativa, a edição de Por que calar nossos amores? Poesia homoerótica latina é mais que importante. É necessária.


Organizadores: Raimundo Carvalho, Guilherme Gontijo Flores, Márcio Meirelles Gouvêa Júnior e João Ângelo Oliva Neto.

288 páginas

Editora Autêntica

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Tadeu Sarmento é autor dos livros breves fraturas portáteis (Fina-Flor Editora, 2005) e Paisagem com ideias fixas (Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias anônimos (Cepe Editora, 2016) e O Cometa é Um Sol que não deu certo (Edições SM, 2019)