por Adriane Garcia__
A
história das mulheres é também uma história da violência. No
romance Sorte, de Nara
Vidal, cuja ação se passa na primeira metade do século
XIX, não importa se a mulher está na Irlanda ou no Brasil. Não à
toa, na epígrafe do livro, a autora nos brinda com um trecho escrito
por ninguém menos que Paulo, o apóstolo que nunca conheceu Cristo e
que após sua fase sincera, aquela em que perseguia cristãos
primitivos, invadia suas casas e os prendia, virou pastor: “Quanto
às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor
e modéstia. (...) Durante a instrução, a mulher conserve o
silêncio, com toda submissão. Não permito que a mulher ensine, ou
domine o homem”. Lembra um outro pastor, dono de emissora de TV
que, recentemente, exortou os fiéis a não deixarem suas filhas
completarem mais que o Ensino Médio.
Certamente
o cristianismo de Cristo seria outro, mas o de Paulo é o que temos
para hoje. Prossigamos com a resenha:
A
narrativa de Sorte acompanha uma família que vive de forma
miserável, na Irlanda, em 1806: um pai católico fervoroso e
extremamente autoritário, uma esposa submetida e filhas humilhadas,
“repreendidas ao menor sinal de alegria”. O pai se
considera extremamente sem sorte por ter apenas mulheres, motivo pelo
qual, mesmo passando necessidades, continua tentando fazer um filho.
A miséria e o nascimento de tantas meninas sendo justificados como
castigo divino: “O pai fazia filhos na mãe até uma hora sair
dela um homem”. Em plena Guerra Napoleônica pela Europa, o pai
desejava qualquer acontecimento, nem que fosse os conflitos chegarem
ao seu país. Enquanto isso, a mãe tentava driblar o eterno cinza
dos dias com cortinas de pano enfeitando as portas.
O
livro possui três partes, sendo que as duas primeiras, Início e
Meio, são narradas por uma das filhas, Margareth. Já o Final, tem
um narrador anônimo, cujo ritmo, inclusive difere em muito da
primeira narradora. Enquanto as duas primeiras partes trazem uma
história mais preocupada em narrar os fatos ocorridos, segundo a
percepção da principal envolvida, Margareth, de forma mais realista
e detalhada, a última parte é narrada com elementos que se
aproximam do lendário; com a pressa e a falta de explicações das
lendas, a aproximação com o maravilhoso, ou seja, a história de
Margareth e as consequências desta história se tornaram a história
contada pelo povo e recolhida por alguém: ganhou as marcas da
oralidade.
Já
na primeira parte, dois acontecimentos agravam ainda mais a vida das
personagens centrais, um com relação à saúde do pai – o que o
torna ainda mais opressor – , outro com relação à viagem que a
família terá que empreender ao Brasil (1827), uma terra que, no
imaginário da gente irlandesa, era uma ilha movediça que aparecia e
desaparecia de sete em sete anos, engolindo seus visitantes e
deixando sua descendência marcada para sempre, sob uma maldição.
Sorte,
é um livro sobre mulheres que aprendem a amar os homens que estão
disponíveis, os piores homens, os machistas que as oprimem e
violentam. Homens que regulam e aviltam, com todas as armas que o
poder lhes dá, a vida, a conduta e os sonhos das mulheres, enquanto
cometem seus adultérios, estupros e falsificam a própria moral.
Nara
Vidal traz a questão da opressão exercida pelo
patriarcado, esse mal no mundo que basta um olhar ao redor para
concluir que não deu certo; também recria um dos retratos da
imigração no país. Neste sentido, Sorte soma aos seus temas
os deslocamentos migratórios a que grandes populações humanas têm
que fazer esperando condições melhores, tantas vezes sem
alcançá-las. Se a viagem dos irlandeses relatada em Sorte já
foi tão precária, o livro leva-nos de imediato a comparar com a
viagem daqueles – os africanos – que sequer podiam trazer uma
mala ou mesmo seus nomes.
No
Brasil, Margareth conhecerá Mariava, a escravizada de dentro,
continuamente estuprada e abusada pelo senhor e senhora da chácara
onde vivem (fato comum e corriqueiro no Brasil-Colônia, no
Brasil-Império, depois continuado na República com as empregadas
domésticas). A amizade – talvez comunhão – dessas duas
mulheres, uma ruiva e uma negra, será parte importantíssima da
trama que se desenvolverá envolvendo maternidade, abandono, Casas de
Misericórdia e afins, instituições que recebiam donativos da elite
para que religiosas e religiosos cuidassem dos enjeitados e, em
Sorte, para cometer atrocidades.
A
forma como esses elementos se cruzam constroem em Sorte um
livro impactante, de ficção e denúncia, sobre dores femininas
muito silenciadas. As histórias de seus personagens nos lembram,
infelizmente, tempo e espaço tão conhecido, deste “lugar
enfeitiçado, sem passado, sem futuro, de mentira que continua se
chamando Brasil”.
“Lembro-me
de ter passado a noite às claras. A Mariava com compressas pelo meu
corpo humilhado em cada pedaço. Minha preta sabia como secar
feridas. Fazia isso todos os dias nela, na Dolores, no irmão, nos
pretinhos que escapuliam da quinta pra ver o horizonte além da
goiabeira.
– O
dia que eu não sinto cheiro de sangue, de machucado, eu acho que
morri. Sei que a vida segue nos conformes porque vivo com sangue e
pus espirrados na bata.
Daniel
dormia no mesmo quarto do James. Ouvia da minha cama o ronco daqueles
dois porcos. Malditos sejam. Só espero que nunca tenham filhos.
Pensei na mãe que insistiu até o fim com o seu olhar de afeto para
que pairasse a bondade dentro da gente. Mas era muita violência,
violação, muito sacrifício.
O
amor desistiu da nossa casa e fazia muito tempo.”
(p.
40)
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Sorte
Nara
Vidal
Romance
Ed.
Moinhos
2019
Nara
Vidal é mineira de Guarani. Formada em Letras pela UFRJ,
mudou-se para Londres em 2001 hoje concluiu um Mestrado em Artes. É
autora de vários infantojuvenis e tem dois títulos adultos
publicados no Brasil. Sorte (Ed.
Moinhos) é seu primeiro romance. Nara foi premiada com o
Maximiano Campos na categoria contos e ganhou por duas vezes o
Brazilian Press Awards em Londres pelo seu trabalho em
literatura. Mora na Inglaterra. Seu livro Sorte foi premiado
com o terceiro lugar na edição de 2019 do prêmio Oceanos.
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Adriane
Garcia
nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de
pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por
estudar sobre a desconstrução do Arraial
do Curral del Rei
e a construção da primeira cidade planejada da República, com
destaque para as questões de esquecimento e memória.Tendo vivido
sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para
as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os
livros Fábulas
para adulto perder o sono
(vencedor do Prêmio
Paraná de Literatura,
2013, ed. Biblioteca do Paraná), O
nome do mundo
(ed.
Armazém da Cultura,
2014), Só,
com peixes
(Ed.
Confraria do Vento,
2015), Garrafas
ao mar
(ed. Penalux,
2018).