Editora Rocco, 2013 - Foto: Roseli Vaz |
Garoava
quando Teresa deixou o prédio. A visão através das lentes dos
óculos escuros impossibilitada em questão de segundos, o mundo mais
e mais embaçado e disforme. Esperou até que tudo se transformasse
em um borrão para só então tirar os óculos e encaixá-los na
blusa, junto ao pescoço. Não precisava deles, na verdade. O dia tão
escuro. Em seguida, cobriu a cabeça com o capuz, colocou as mãos
nos bolsos da blusa de moletom e saiu pela calçada. Uma adolescente
cabulando aula, vagabundeando. Dia útil para os outros, não para
mim. Seus passos eram incertos, como se tivesse bebido um pouco, e
caminhava olhando para o chão, com medo de tropeçar no pavimento
cheio de buracos, rachaduras, poças d’água, entulhos. Estava
agora a favor do vento, o que não era ruim. O vento investia contra
as suas costas e era como se a empurrasse. (Veja: sem raízes aqui.)
À sua esquerda, do outro lado da rua, as árvores do parque ainda se
dobravam. Lembravam pessoas se alongando antes de correr num dia
ensolarado. Evitou olhar para as árvores. A mesma sensação
desoladora que tivera ao observá-las pela janela da sala, de que
elas migrariam a qualquer momento. Não queria vê-las indo embora.
Ou talvez elas apenas se dobrassem até quebrar. (Tudo se dobra e vem
ao chão num estrondo, de um jeito ou de outro, mais cedo ou mais
tarde.) Não queria vê-las se dobrando até quebrar. Não queria ver
nada, mas um trecho menos acidentado da calçada permitiu que
levantasse a cabeça. A cidade ao redor como que interditada, ninguém
à vista. O cenário desolado de um filme apocalíptico. O mundo
acabou: agora, podemos viver. Mas não havia ruínas. Os prédios
inteiros se repetindo a distâncias regulares. Brasília, ora essa.
Tudo em Brasília se repete a distâncias regulares. Fim do mundo,
mas um apocalipse higiênico que extinguisse a vida humana, não as
edificações. Os apartamentos todos vazios, como os de um prédio
terminado e nunca inaugurado. Silenciosa e tranquila terra de casas
vazias. Por alguma razão, isso lhe pareceu justo. Deus estalando os
dedos e desaparecendo os seres, mas deixando os prédios intactos:
concreto deiforme. Justo e agradável, sim. Glória a Deus nas
alturas. . Ao Senhor, que matou o próprio Filho e também o meu.
Também o meu. Respirou fundo. Não se sentiu melhor. Qual é a porra
do Seu problema? Arrancando os filhos de suas mães. Disseram a ela
que não pensasse nisso. Não pensasse nessas coisas. Não pensasse.
Todos, sem exceção. Mas, como não? Quando a falta é o que há.
Quando tudo se reduz à ausência. Creio Em Deus Pai Todo-Poderoso
Criador Do Céu E Da Terra E Em Jesus Cristo Seu Filho Unigênito
Nosso Senhor etc. Seu Filho Unigênito. Tenta não pensar nisso,
disseram. É difícil, quase impossível. Mas tenta. Para não
enlouquecer. Para se recompor. Para seguir em frente. Você e Arthur.
Ele precisa de você. Que infantil, ela pensou. Tudo, tudo isso. Do
começo ao fim, afora e adentro. Pensar ou não pensar, seguir em
frente ou não. Que besteira, que.
Tropeçou.
Uma
rachadura na calçada, o tropeço e ela caindo de joelhos, as duas
mãos ainda nos bolsos. Soltou um gemido, a boca mal se abrindo. Não
deu com a testa no chão por muito pouco. Levantou-se com
dificuldade. Dois pequenos rasgos nas calças, os joelhos agora
poderiam enxergar o que estivesse à frente. Dois olhos vermelhos bem
no meio das pernas. O moletom preto, quase não se percebia. Algumas
lágrimas rolaram, poucas. Mais pelo susto. Esperou um pouco, que o
tremor nas pernas passasse. Então, seguiu viagem, mais do que nunca
concentrada no chão.
Fim
das contas – ou para pagar as contas –, o poeta veste a roupa de
três peças: paletó, colete, calças. E como claustrofobia pouca é
bobagem, acrescenta-se uma gravata. O poeta não é mais poeta, ou o
é apenas do lado de dentro, discretamente verde. Quem olha de fora,
vê o homem crescido, cooptado. Internamente, insubordinado, ele
continua a se perguntar a inútil e bela questão: De onde vem a
poesia? Como apreender o efêmero? O que acontece no espírito para
despertá-la? Sabendo que o próprio surgimento do poema é um
mistério e que o artefato da poesia só vai se realizar se ele mesmo
(o poema) o quiser, em contraponto com a sociedade tecnocrata de
padrões, metas, ordens e manuais de instrução para se construir a
infelicidade.
Trecho do romance
Terra de casas vazias (Rocco,
2013)
André
de Leones
(Goiânia, 1980) é autor dos romances Eufrates
(José
Olympio),
Abaixo do Paraíso
(Rocco),
Terra
de casas vazias (Rocco)
e Hoje
está um dia morto
(Record),
entre outros livros. É graduado em Filosofia e vive em São Paulo.
Página pessoal: andredeleones.com.br.