março 31, 2020
março 31, 2020
por Ângelo Fábio__
Estamos focados no combate à pandemia do coronavírus
(COVID-19) e assistimos aos constantes absurdos, que também
considero como uma pandemia mental, do então Presidente da República
Jair Messias Bolsonaro. Além da incapacidade administrativa, da
falta de diálogo e da ausência de um real posicionamento como líder,
tudo que sai da boca deste indivíduo beira a estupidez, a insensatez
e ao desrespeito humano. Sobre vários aspectos em jogo, pontuo a
falta de recursos para saúde pública, o enfraquecimento do
desenvolvimento econômico do país, a estagnação de políticas de
fomento à cultura e o enfraquecimento de medidas pontuais para a
defesa do meio ambiente. Estes e outros temas afetam diretamente a
autoestima da nossa população. E mais uma vez o setor cultural sofre
perdas. As alternativas para contenção dos problemas para a
categoria são cada vez mais escassas. É
importante frisar que, em 19/03/2020, uma conferência online reuniu
gestores e secretários estaduais de cultura. Foram apresentadas
propostas emergenciais para a Secretaria Especial de Cultura do
Governo Federal, através de um documento formulado pelo do Fórum de
Secretários e dirigentes estaduais.
.
Alvim e Goelbbes |
Da
unção ao discurso Nazista. Uma cortina de fumaça até a chegada do
pum produzido pelo palhaço.
Um
assunto que repercutiu bastante no cenário cultural, em janeiro deste
ano, foi o vídeo divulgado pela Secretaria Especial da Cultura, em 17/01/2020, onde o até então Secretário Especial da Cultura,
Roberto Alvim, copiou e adaptou trechos do discurso nazista,
proferido pelo ministro da propaganda Joseph Goelbbes (1897 -
1945+).
“A arte brasileira da próxima década será heroica e será
nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento
emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente
vinculada às aspirações urgentes do nosso povo – ou então não
será nada”.
Tal
discurso gerou uma onda de indignação e rejeição por parte de
vários setores no Brasil e no exterior, inclusive pela Embaixada da
Alemanha, que publicou uma nota de repúdio. Um dia antes do fatídico
pronunciamento, Alvim apresentava ao presidente Bolsonaro as novas
diretrizes do programa de incentivo à cultura, um projeto criado
dentro de um perfil conservador e segregador. Após seu polêmico pronunciamento, Roberto Alvim é exonerado
da Secretaria Especial da Cultura.
Regina Duarte e Roberto Alvim |
Em
04 de março, de 2020, a pasta é assumida pela “Viúva
Porcina ou a “Namoradinha
do Brasil”, Regina
Duarte. Ela, uma efusiva lutadora
pelos interesses do agronegócio, é contra a demarcação de terras
indígenas, além de se posicionar a favor dos cortes na cultura. No programa Conversa com
Bial (29.mai.2019) na Rede Globo o
apresentador e jornalista comenta: “Regina,
eu tô me coçando pra dizer uma coisa… Se ainda tivesse ministério
da cultura, você podia ser ministra da cultura. Não tem mais
Minc*...”.
Regina completa: “Isso aqui não é meu não. Não é uma ideia
minha, mas é uma ideia que eu compro inteiramente, eu endosso. ME
CHAMA PRO CONSELHO TÁ!?...”.
Desde então tínhamos o prenúncio de sua possível entrada no
extinto Minc, que hoje se resume a uma mera secretaria sem rumo.
Em
momento prévio, antes do anúncio da sua nomeação, em rede social
Regina sinaliza que “estar de corpo e alma com o governo e vai dar
o melhor pela causa.” Não é nenhuma novidade que governos
radicais findam ações ou qualquer proposta de melhoria no setor
artístico. A pasta da cultura já havia sofrido uma tentativa de
extinção no governo golpista de Michel
Temer (MDB-SP). Na ocasião se
discutia uma reforma ministerial, sendo o Ministério da Cultura o
primeiro da lista para ser extinto. O Minc
apenas sobreviveu por conta da pressão de diversos movimentos
culturais e sociais. Artistas de todo o país lutavam e ocupavam
espaços em atos de resistência. Atuamos para que o Ministério
da Cultura se mantivesse de pé,
mesmo com diversos problemas.
Mas
aos poucos os movimento de resistência perderam a força. Por outro
lado um [grupo de artistas
brasileiros cria no ano de 2019, o Movimento Artigo 5º em defesa da
liberdade de expressão e contra qualquer ameaça de volta à censura
no Brasil. É um movimento coletivo espontâneo e suprapartidário do
qual participam cineastas, atores, grupos artísticos, diretores,
escritores, profissionais da moda, gestores culturais, jornalistas e
advogados de todo o país que trabalham voluntariamente pelo respeito
à Constituição Brasileira, nascida em berço democrático, vital
para existência das atividades criativas e para a preservação do
direito de ir e vir, ser e existir e da liberdade de pensar e se
expressar.] - Fonte:
https://www.artigoquinto.art.br/
Em
2019, com a chegada do governo da “Pátria
A(R)mada Brasil”, o fim do
Ministério da Cultura
é oficializado. Sobra a categoria a criação de uma secretaria,
medida semelhante a do governo Collor,
que em represália a classe artística impôs o autoritarismo.
Nasce
então a Secretaria Especial da
Cultura sob a gestão de Roberto
Alvim, ex-artista(?), ungido pelo
apóstolo e “profeta” Kevin Leal,
da Igreja Bola de Neve Church,
no bairro da Lapa, em São Paulo. Alvim apresenta uma “máquina de
guerra cultural”, talvez a partir daquele momento já servindo como
uma cortina de fumaça para abrir as portas a tantos descasos e
quiçá, a própria Regina Duarte.
O
pronunciamento “nazista” de
Roberto Alvim não foi gratuito, e
sim orquestrado. A entrada da Regina talvez seja um aporte à
barbárie da cultura. No discurso da oficial da sua posse, ela diz que:
“Cultura é aquele pum produzido
com talco espirrando do traseiro do palhaço”. A partir daí já conseguimos visualizar o tanto que ainda está por
vir.
Colaborou: Taciana Oliveira
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*Acesse a entrevista do programa Conversa com Bial: Globoplay: https://globoplay.globo.com/v/7653765/)
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Ângelo
Fábio, 1981.
Artista interdisciplinar e produtor cultural que trabalha com o
cruzamento das linguagens cênicas. Fundador do
Pós–Traumático,
Hemisférios Itinerantes
(AR/BR) e
Caosmo Cia. Experimental.
Estudou jornalismo de
investigação na Universidade
Popular Madres de la Plaza de Mayo
e Licenciatura Direção Cênica (UNA), Argentina, porém
não concluiu os estudos universitários. É
idealizador do Cineclube
Universo Paralelo e co-idealizador da
Mostra Periférica,
em Camaragibe.
Também já foi diretor do Cine
Teatro Bianor Mendonça Monteiro (2017/2018),
produziu o livro Bianor – Trajetórias e Memórias
e promove o Encontro das
Artes Cênicas de Camaragibe
(2017/2019). Como ator e diretor, integrou diversas companhias
artísticas no Brasil e outros países.
março 22, 2020
março 02, 2020
por Taciana Oliveira__
Na pré-adolescência a minha solidão era reflexo da total falta de empatia com o núcleo familiar que foi me imposto. Durante alguns longos anos não morei com minha verdadeira família. Consequência de um processo traumático que culminou com o desquite dos meus pais. Para preencher esse vazio passei a devorar intempestivamente os livros da estante da minha tia, ou os muitos que chegavam pela mãos dos meus irmãos. Posteriormente me apaixonei por música popular. Virei uma fiel ouvinte de programas de rádio, colecionadora de publicações musicais e consequentemente adoradora de vinis.
Ainda hoje vou-me embora pra Candeias
Ainda hoje meu amor eu vou voltar
Da terra nova nem saudade vou levando
Pelo contrário, pouca história pra contar
Candeias, Edu Lobo
Candeias, Edu Lobo
No comecinho da década de 1980, meu pai adquiriu um apartamento no bairro de Candeias, próximo às praias de Piedade e Barra de Jangada. Esse imóvel virou quase que uma “casa de veraneio” frequentada por parentes e amigos. Depois de um longo hiato nossos encontros tornaram-se quase que regulares nos finais de semana. Mas ainda assim sempre persistia um silêncio, uma distância incômoda, consequência infeliz da nossa separação. Foi em Candeias que perdi as contas de quantas vezes ouvi a voz de Gal Costa nos corredores do Edifício Ramalho Ortigão. Seu Euclides adorava ouvir a cantora baiana entoar os versos do compositor Lupicínio Rodrigue: Volta!/ Vem viver outra vez ao meu lado...
O álbum em questão era uma coletânea de grandes sucessos, e vinha com as gravações originais de Baby, London London, Não identificado e Divino Maravilhoso. Escutar aquele vinil, naquele instante, era um sopro de esperança, um presságio do que estava ainda por vir.
Atenção ao dobrar uma esquina
Uma alegria, atenção menina
Você vem, quantos anos você tem?
Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, para esta escuridão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção para a estrofe e pro refrão
Pro palavrão, para a palavra de ordem
Atenção para o samba exaltação
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção para as janelas no alto
Atenção ao pisar o asfalto, o mangue
Atenção para o sangue sobre o chão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Divino Maravilhoso, Caetano Veloso
Li mais livros e escutei bem mais canções do que falei com meu próprio pai. Nossa esparsa convivência nesse mundo foi permeada por desencontros. Euclides era uma figura folclórica, mas era respeitado por seus clientes, amigos e funcionários. Um torcedor fanático do Sport, um folião incansável, boêmio e frequentador do histórico Bar Savoy. Meus dois irmãos herdaram comportamentos e hábitos semelhantes ao dele. É através deles que me reconecto a algumas lembranças e ao principal legado do Seu Euclides: a honestidade. Não há um final de conto de fadas nessa narrativa. Há erros e acertos. Algumas atitudes poderiam ter sido evitadas, outras careciam de uma maior atenção. Quando recordo do homem que foi meu pai, desenho sequências de um filme por vezes melancólico, mas extremamente coerente para o que aconteceu dentro das suas limitações. De vez em quando ainda sinto o cheiro doce e perfumado do fumo irlandês que ele guardava no bolso da camisa de linho. São fragmentos da infância, polaroides da adolescência, registros de discussões inúteis de pessoas que se amavam tanto e não sabiam verbalizar o óbvio. Enquanto me preparava para escrever esse texto coloquei na radiola o álbum lançado por Gal Costa, em 1969. Comprei essa raridade de um rapaz, que comercializava vinis antigos na calçada onde antes funcionava o Savoy. Coincidência? Não sei. Deixemos a baiana cantar!
Você precisa saber da piscina
Da margarina, da Carolina, da gasolina
Você precisa saber de mim
Baby, baby, eu sei que é assim
Baby, baby, eu sei que é assim
Você precisa tomar um sorvete
Na lanchonete, andar com a gente, me ver de perto
Ouvir aquela canção do Roberto
Baby, baby, há quanto tempo
Baby, baby, há quanto tempo
Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais
E o que eu não sei mais
Não sei comigo vai tudo azul
Contigo vai tudo em paz
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul, da América do Sul
Você precisa, você precisa, você precisa
Não sei, leia na minha camisa
Baby, baby, I love you
Baby, baby, I love you
Baby, Caetano Veloso
*Para Euclides de Oliveira Melo, meu pai.
Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.
março 02, 2020
por Tadeu Sarmento__
Se
em “Os ratos roeram o azul” – belíssimo e imagético
título do livro de estreia de César Gilcevi – o poeta traz à
tona a imagem angustiante e indignada de um artista pobre e pardo na
periferia de Belo Horizonte; em “Retrato do poeta quando devedor
de aluguel” (seu trabalho mais recente, lançado pela Editora
Letramento), essa periferia é ampliada até abarcar todo um país
injusto como centro e, a comunidade de marginalizados iguais ao
artista, como algo maior, bem mais perigoso (listados no poema
“noturno ponto50”). Por conta disso, trata-se de um livro de
extrema virulência política, repleto de referências bíblicas que
convivem com pinceladas da música e da cultura pop e erudita, além
das religiões de matriz africana.
E
o retrato do poeta devendo aluguel é apenas um dos diversos retratos
dessa odisseia cheia de buracos, na qual os poemas funcionam como
percursos narrativos cujos “heróis” desejam subverter as
injustiças sociais. Há também o “retrato do poeta pardo tentando
escapar do navio negreiro”; ou o “retrato do poeta usando
anúncios de empregos para limpar a bunda”, ou ainda “o retrato
do poeta na rodoviária de Itabira”. Em cada um destes, percebe-se
a tentativa de Gilcevi em denunciar toda a realidade através da
fúria e da imaginação, antes que o Moloque burguês, representante
das forças que sempre estiveram no poder, consiga destruí-lo. Ou
cooptá-lo.
É
para evitar a capitulação que o autor retorna para beber na fonte
de sua ancestralidade (“gênesis; cap. I”) ou de seu passado,
onde “a rua da infância continua no mesmo lugar”. Sua escrita
vigorosa denuncia o pesadelo de uma normalidade excludente em cada
esquina e, para tanto, costura frases certeiras (“sob a caixa
torácica \ o cofre alarmado”) com visões noturnas, além de
descidas ao inferno a mando de Deus. Isso sem falar no humor. Por
exemplo, em um poema de César Gilcevi, a “Comala” de Juan Rulfo
se transforma em uma biqueira para a qual os filhos se dirigem atrás
do fantasma do pai.
A
poesia de Gilcevi se coloca contra os valores de uma sociedade que
não representa os pobres, utilizando-se das mais diversas imagens do
sincretismo religioso, e assumindo totalmente a condição de poeta
periférico decidido a denunciar que, na mesma semana em que “Ana
foi embora”, os “fascistas tomaram o poder”. E é em
consequência da percepção das situações críticas da interdição
da cidadania em nosso país que a interlocução do poeta com a
violência do mundo real se dá.
No
que se refere à forma, não se trata apenas de ler Gilcevi em função
de suas pontes de estilo (e de temática) com autores como Roberto
Piva, Drummond e Allen Ginsberg, mas de pensá-lo, principalmente, a
partir de sua filiação a um tipo de lirismo moderno, de espectro
baudelairiano, que compreende seu vínculo com o pensamento
politicamente performático, relacionando-o com as camadas sociais
marginalizadas. É a partir dessa chave que é possível compreender
o “Retrato do poeta quando devedor de aluguel” como um
manifesto político sobre o nosso tempo (“um monumento à justiça
brasileira / erigido com 450 kilos de cocaína”), lendo seus poemas
como pontiagudos objetos político-culturais, positivamente a serviço
de certas ideias transgressoras que contribuem para a subversão de
determinados discursos que naturalizam a exclusão da sociedade.
Ao
agir sobre a consciência humana, acendendo seus alertas, a palavra
do poeta pode despertar a indignação que nos levaria à luta por
condições mais justas, por realidades mais humanas e mais justas,
nas quais exerceríamos o direito à liberdade de viver, e não
apenas de sobreviver? Não sabemos. O que se sabe é que a poesia
sempre terá algo a revelar, ainda que seja só o mundo real, bem
diante dos nossos olhos. O caos da pobreza, a certeza de que “a
poesia nunca salvou ninguém” e o abandono social que o poeta
descreve, tornam o trabalho com a escrita a representação certeira
dos modos de sobrevivência em um país violento com os que não têm
nada nem ninguém por eles. A solução? Ler os poemas de César
Gilcevi. Ou “ir a Brasília matar o presidente”, como deseja o
“José” do poema “2016”.
Retrato
do poeta quando devedor de aluguel
César
Gilcevi
124
páginas
Editora
Letramento
34
reais
César
Gilcevi publicou o livro/cd Os ratos roeram o azul pela
Editora Letramento, em 2016. Vocalista da banda Cadelas
Magnéticas, lançou o EP Encruzilhada (2017), disponível nas
plataformas digitais. Retrato do poeta quando devedor do aluguel é
uma publicação da Editora Letramento, 2019.
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Tadeu
Sarmento é autor dos livros breves fraturas portáteis
(Fina-Flor Editora, 2005) e Paisagem com ideias fixas
(Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias
anônimos (Cepe Editora, 2016) e O Cometa é Um Sol que
não deu certo (Edições SM, 2019)