por Adriane Garcia__
Coletânea
de dez histórias que prendem o leitor do início ao fim – e
reverberam, As
baleias do Saguenay
(Ed. Moinhos), de João
Batista Melo
é um livro conciso, desses que provam que mais vale um livro com
poucas páginas – porém todas necessárias – do que um livro
cheio de páginas, mas do qual poderíamos prescindir de grande
parte. Com apenas o necessário – e epígrafes perfeitas precedendo
cada conto – João
Batista Melo
compõe mundos. Mundos dos quais seus personagens se despedem.
No
conto As
baleias de Saguenay,
que dá nome ao livro, um filho se despede de um pai e um pai se
despede da imagem que representa um oceano limpo, despoluído, prenhe
de vida: a imagem das baleias. Em Caminho
das Índias,
o inusitado de estarmos diante do escrivão de Cristóvão Colombo e
assistindo à despedida de um mundo de superstição, indo ao
encontro da esfericidade do planeta, da ciência da navegação, do
mundo novo. Em A
lanterna mágica,
o passado fica representado no encontro com a misteriosa Luciana, na
beleza do cinema, na nostalgia pelo prédio que o abrigava, um conto
lindíssimo também sobre a despedida e a imposição do dinheiro
“que
ergue e destrói coisas belas”.
Em FC,
é o escritor que se despede da vida e trama o ato de escrever na
própria trama. Depois
do crepúsculo
despede-se da amizade e daquilo que mesmo nos incomodando pode ser
que faça parte de nós a ponto de sentirmos falta; é um conto sobre
dois velhos que sabem que não há mais o mundo deles e que nunca
confessam exatamente o que sentem um pelo outro. Retratos
de uma paisagem
revela a despedida da civilidade e dá uma rasteira no leitor ao nos
conduzir por um caminho e chegar a outro, que sequer imaginávamos. A
moça triste de Berlim
é a despedida dos sonhos democráticos, a inauguração dos governos
fascistas e nazistas, a instauração da violência como governo e
oposição: a guerra. Em O
homem que fraudava latas,
despede-se da empatia. Em Os
caminhos do vento,
um casal vê sua lua de mel transformada numa experiência de horror
(ou paranoia?), aqui um dos temas do conto que dá nome ao livro
retorna: um mundo poluído, que adoece os seres e o planeta. Em Uma
voz,
João
Batista Melo
tece mais uma narrativa emocionante, o escritor sabe que escreve por
causa da morte, a derradeira despedida.
Pelo
enfoque do desaparecimento de mundos, As
baleias de Saguenay
se irmana a outro autor: o uruguaio Juan
José Morosoli,
também mestre de falar sobre os viventes de um tempo que já se foi,
ou de personagens à beira do desaparecimento. Em ambos, José
Batista Melo
e Morosoli,
a passagem do tempo e o sentimento de perda são cruciais.
Neste
As
baleias de Saguenay,
o autor constrói narrativas que muitas vezes desembocam no
fantástico. Seus contos saem de realidades muito palpáveis e podem
ir para um salto de imaginação e/ou para uma grande metáfora. Uma
habilidade em manter o suspense faz com que o leitor não queira
interromper a leitura de um mesmo conto – já que a profundidade
deles o fará dar uma pausa entre um conto e outro; também a
variação de seus personagens, envolvidos em atividades e cenários
diferentes a cada história, pertencentes a paisagens que mudam conto
a conto, colabora na avidez do leitor, já que ele sabe: será
surpreendido novamente.
As
baleias de Saguenay
traz situações profundas que nos deparam com nossas próprias
despedidas, neste mundo que muda tão rapidamente que já não o
reconhecemos mais e corremos o risco de nem nos reconhecermos a nós
mesmos.
“Alguns
se fazem ao mar pelas riquezas. Outros embarcam em defesa da fé. Eu
nem ao menos esse lenitivo tenho. Navego apenas por navegar. Em
tempos remotos, criei escamas de peixe e me fiz sereia insubmersa,
prisioneiro dos escaleres e das gáveas, condenado a vaguear pelos
mares, quer como corsário quer como homem do rei.
Sem
cobiça além das ondas e tormentas, não me justifico a presença
nesta nau insana. Sinto a morte a nos esperar e nenhuma de suas
recompensas me alicia: nem a conversão dos bárbaros nem o tesouro
dos cravos e granadas. Olho o mar se abrindo para o nosso calado e me
pergunto se nós o cruzamos ou se ele nos arrasta, iludidos, rumo a
um destino obscuro.
Da
amurada na proa, Cristóvão Colombo me observa, e no seu silêncio
demonstra conhecer o que me perturba. Insinua nos olhos cortantes que
sabe ser eu quem no alto das escadas, no esgotamento dos porões,
sopra temores nos corpos da tripulação, espalha horrendas histórias
e visões e as deixa alastrar pelo convés nas noites mais escuras.
Quando tiver a certeza me lançará aos tubarões, fará dos meus
braços e pés uma nova âncora, deixará os papéis onde escrevo
derivarem nos vagalhões do Mar Oceano.
Por
enquanto me relega ao ostracismo. Precisará de mim apenas quando
avistar terra. Então me chamará, e eu, o seu renitente escrivão,
contarei os atos de bravura das três embarcações que se
aventuraram para onde ninguém antes ousou seguir, e enfim aportaram
nas Ilhas Molucas para retornarem cravejadas de sementes. Esse é o
sonho de Colombo. Esse é o meu pesadelo.”
(Excerto
do conto O caminho das Índias, pag. 29)
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As
baleias do Saguenay
João
Batista Melo
Contos
Ed.
Moinhos
2019
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João
Batista Melo nasceu
em Belo Horizonte, Minas Gerais. Seus contos têm grande influência
do realismo mágico e da literatura de fantasia. Seus livros
apresentam, ainda, um expressivo diálogo com o cinema, área em que
ele também atua como crítico e realizador. Identificado com a
chamada Geração 90 da literatura brasileira, sua obra recebeu
alguns dos mais importantes prêmios literários do país: "Prêmio
Paraná",
"Prêmio
Nacional Cruz e Sousa de Romance",
"Prêmio
Guimarães Rosa"
e duas vezes o "Prêmio
Nacional Cidade de Belo Horizonte".
Seus filmes de curta-metragem foram selecionados para festivais no
Brasil e no exterior, tendo o filme infantil "Tampinha"
recebido o prêmio de melhor curta de ficção no
Festival Divercine,
no Uruguai. Compositor,
é autor de temas dos curtas "A
janela"
e "Um
ano novo danado de bom". Fonte: Site do Autor
Adriane
Garcia
nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de
pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por
estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a
construção da primeira cidade planejada da República, com destaque
para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na
periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens
e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros
Fábulas para adulto perder o sono
(vencedor do Prêmio
Paraná de Literatura,
2013, ed. Biblioteca
do Paraná),
O
nome do mundo
(ed.
Armazém da Cultura,
2014), Só,
com peixes
(Ed.
Confraria do Vento,
2015), Garrafas
ao mar (ed.
Penalux,
2018).