HORA ANTES DE DORMIR, ALESSANDRO CALDEIRA


por Alessandro Caldeira_



IV
Eu nem olhei para trás e tal, saí correndo com muita raiva, quanto arrepio só de lembrar aquele velho me tocando, não tive coragem nem de olhar para as pessoas. Meu desespero foi tão grande que eu nem reparei que havia escurecido.
Com certeza a Lari vai me matar! até pensei em mandar alguma mensagem, mas na hora comecei a chorar, eu nem sei o porquê, mas chorei.
Tive vontade de conversar, mas não com a lari, com um amigo que faz tempo que não o vejo, o Lúcio. Você não conhece, eu não falei dele ainda. Mas é um cara bem bacana, se quer saber a verdade. Sempre que entrávamos num assunto, ficávamos horas discutindo. Eu gosto dele. Só tem umas coisas chatas de me dizer que aposta muito em mim e tal, que quando eu amadurecer serei capaz de fazer grandes coisas. Ele fala bem assim. Tenho de admitir, é um bom amigo.
Uma vez ele tinha dito algo do tipo que eu tenho uma natureza incapaz de ser feliz, aquilo não me fez muito bem. Quer dizer, ele fala essas coisas porque se preocupa e tudo, sei disso, só não quero pensar na felicidade agora, sabe?
Eu desisti de ligar para o Lúcio, ele não iria me atender, além de tudo ele é bastante ocupado com as coisas dele, não queria o aborrecer.
Lembrei de um lugar bem bacana que as pessoas costumam ir para passar o tempo, ouvir música (normalmente tinha uns covers de bandas de rock por lá), como eu estava bem pertinho, acabei indo pra lá.
O lugar não era muito organizado, não, além da rua ser bem suja, de vez em quando encontramos uns ratos passando na nossa frente, mas naquele dia, estava diferente e tal, acho que é porque era uma noite com a banda e depois vinha um stand up.
Eu não conhecia ninguém daquele lugar, as pessoas eram bem mais velhas, mas achei bom, sabe? Queria um lugar que eu fosse desconhecido.
Não demorou muito para eu conhecer o barman e comecei a dizer a ele que estava passando por uns perrengues no trabalho, que eu só queria que ele colaborasse um pouco para que eu pudesse esquecer um pouco o dia e tal. Fiquei falando até ele se convencer de me dar a bebida.
- Prometo que não irei beber muito, só quero me sentir enturmado, sabe? E tem mais, eu estou com bastante sede também.
O cara me olhou desconfiado, mas acabou me dando uma cerveja e disse que seria só aquela lata mesmo. Me conformei e fui andando pelo lugar, confesso que ele já estava começando a me dar nos nervos com todo aquele jeito dele moralista. As pessoas tendem a bancar os morais justo nos piores lugares possíveis.
Escolhi uma mesa para sentar e fiquei lá ouvindo a banda, era legal, um cover da Legião Urbana. Eu não estava no clima, se você quer saber a verdade, mas fiquei só porque eu gosto das músicas.
Talvez por tédio ou algo assim, comecei a reparar numa garota sentada bem na minha frente. As mechas no cabelo dela me atraíram e tal e parecia bem animada cantando as músicas. Até que gostei de olhar para aquela cena. Tenho que admitir, ela é bem bonitinha.
Eu não levo muito jeito para chegar nas meninas, sempre pareço um pouco ridículo fazendo isso. Por exemplo, uma vez fui tentar conversar e eu me enrolei todinho, comecei a embaralhar as palavras, fiquei pedindo para que ela me lembrasse de algo para falar. A presença delas me parece mais forte e tal. Eu não sei explicar.
Mas com essa garota do bar eu não quis chegar, não, eu fui me aproximando trocando de cadeira até chegar pertinho dela. Não sei se ela reparou, mas acabou me olhando. Não achei que ela iria conversar comigo. Ela gritou tanto que até me assustei.
- Ei, tudo bem?
- Olá.
Respondi meio assustado, mas fiz de tudo para que ela não reparasse e me achasse uma criança que não soubesse lidar com esse tipo de coisa.
- Qual seu nome?
- Rafael, e o seu?
- Karin!
- Karin? Com “i”?
- Isso! Tem algum problema?
- Não, lógico que não. Eu só gostei.
Ela soltou um risinho. No fim, parece que ela gostou do que eu disse.
- Você tá sozinho?
- Não, alguns amigos estão comprando bebida.
- Ah, sim.
Eu acho que ela notou que eu menti, mas ela parecia legal e acabou nem falando nada sobre isso.
- Gosta da música?
-Sim, eu gosto. Tenho um amigo que possui uma coletânea da Legião e às vezes ficamos ouvindo.
Parece que ela não estava muito a fim de conversar sobre a banda. O que já me aborreceu, sempre gostei de falar sobre as bandas e tal, me ajuda a ouvir melhor, sabe? Mas mesmo assim, tomei coragem para convidá-la para fazer alguma coisa.
- Você quer dançar?
- E você sabe dançar, garotinho?
- Claro que eu sei. Eu poderia até te ensinar, tenho certeza.
- Se for verdade, você pode até ganhar um beijo.
Meu deus do céu! Quando ela disse aquilo eu fiquei assustado. Não queria que ela pensasse que estava dançando só por causa do beijo. Não queria que ela achasse que eu estava contando com essa condição, sabe?
Eu acabei aceitando, mesmo assim. Ela até que dançava bem certinho, tinha um certo cuidado, às vezes de não pisar no meu pé e tal, era bem engraçadinha.
- Sabia que essa música o Renato fez como se estivesse conversando com ele mesmo? Só que um outro mais jovem?
- Qual? Essa? Qual é o nome mesmo?
- Eu Era Um Lobisomem Juvenil.
Eu não sei, mas ela parecia não se importar muito com o que eu estava falando, então decidi ficar em silêncio e tal. Mas minha vontade mesmo era de gritar no ouvido dela para parar de se isolar, sabe? Mas eu nem podia fazer isso, normalmente esses lugares servem para isso mesmo.
- Ah, entendi. Qual é mesmo a sua idade?
- Tenho 23. Por que?
- Tem uma cara de garotinho.
Olha, não sei se já falei para você, mas se tem algo que me deixa irritado é alguém me chamar de “garotinho”. Eu sei que menti para ela, mas qual é a diferença se eu tenho quinze ou vinte e três se eu estava dançando com ela?
Eu não sei se foi sorte, mas o stand up começou. O cara que entrou no palco era um típico humorista: magricelo, com calça meio desbotada que parece que faz alguns anos que não lava. O cara até que era engraçado e tal, até que estava curtindo se você quer saber.
Mas meu deus, o cara começou a fazer umas gracinhas bem toscas, talvez porque as pessoas já estavam bêbadas e ele não se importou muito. Para piorar, a garota que eu estava começou a fazer umas piadinhas escrotas com qualquer tipo de pessoa, não sabia se era a bebida ou aquele stand up ruim que mexeu com a cabeça dela.
Até que um cara, daqueles com corpo de gente que vai pra academia, ficou bravo e partiu para cima dela. Eu fui ajudar, é lógico que ela estava passando dos limites e tudo mais, só que ele não tinha nada que bater nela.
- Larga de ser estúpido! Deixa a menina em paz.
- Cala a boca, senão vai sobrar para você, pirralho!
- Vai se foder! É você quem está errado, estúpido!
Meu deus! Esse cara partiu pra cima de mim e levei um soco na cara, mas continuei xingando-o de tudo quanto é palavrão que me passava pela cabeça.
- Estúpido! Filho da puta! Animal sem cérebro!
Eu já estava ficando fraco de tanto que ele me batia. Ainda tentei reagir xingando mais ainda, mas não tive forças para gritar. O cara parou e foi embora.
Só que eu fiquei lá, estendido no chão enquanto todo mundo passava por cima de mim. Fiquei deitado até as pessoas irem embora. Quando tudo se acalmou, saí daquela espelunca, furioso. “Por que eu fui me meter? Era só fazer como todo mundo, ir embora”. Eu comecei a pensar um monte de coisa sobre o que aconteceu e tal. Aquilo me deu uma tristeza do cacete!
Eu precisava voltar para a casa, mas não tinha coragem para isso. Ver a mamãe, a lari e tudo mais.
Foi aí que lembrei do Lúcio mais uma vez. Quis ligar de novo para o meu amigo, mas ele não iria me atender, então desisti.
V
Eu não voltei para casa, fiquei pensando na garota que estava comigo, não porque me importava com ela, de jeito nenhum! Mas eu gostaria de descobrir aonde se escondem os covardes.
Quer dizer, para onde vão todos aqueles risos fáceis ao ouvir as piadinhas daqueles humoristas de barzinho chapado quando tinham que encarar algo mais sério e tal?
Não quero que você pense que eu acho que não podemos dar risada, com certeza, não.
O que eu estou dizendo é que não consigo entender como as pessoas só conseguem viver amenizando suas dores com piadas baratas e tudo.
Aí acabam virando todos uns imbecis iguais aquele idiota que não consegue se segurar quando falamos que ele é um idiota e parte para cima querendo te esmurrar.
Mas eu sei que ele não queria me esmurrar, para te falar a verdade, com certeza não era essa a intenção. O que o cara queria mesmo era esmurrar as palavras da minha boca e tal. Essas pessoas não aguentam ouvir a verdade sobre elas.
Mas eu também não gostaria que eles fossem como eu, pelo contrário. Primeiro que eu não sei ser alegre desse jeito. Segundo que eu não gostaria de ter uma alegria emprestada dentro de um barzinho vagabundo. A gente acaba sempre acaba parecendo umas hienas rindo de qualquer coisa. 
E continua...

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Alessandro Caldeira é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema.