por Tadeu
Sarmento__
Se
há uma ideia recorrente na obra de Enrique Vila-Matas (capaz
de sintetizar o que a literatura significa para o autor catalão), é
a de uma “empresa fracassada”. Não por acaso, conceitos como
“desaparecimento”, “hibridismo das formas”,
“intertextualidade” e “metaficção” perpassam toda a obra do
escritor, uma vez que são formas atuais de pensar a escrita em um
espaço de crise onde a originalidade não é mais possível e os
modelos canônicos não mais se sustentam. Ocorre que a vontade de
escrever, ou de não escrever, aliada à constatação da inutilidade
da escrita, ou da não-escrita, é todo o jogo da obra de
Vila-Matas – e é diante do limite entre a afirmação e a
negação da literatura que o autor constrói suas histórias.
Sintomático
que Vila-Matas tenha elegido mais uma vez o “diário” como
motor de seu romance (de Bartleby & Cia a Mal de
Montano, passando por Doutor Pasavento e Dublinesca),
inscrevendo-se no paradoxo entre a escrita pessoal e pública para
recuperar aquilo que Philippe Lejeune chama de “espaço
biográfico”, embora entendendo o diário não como compreensão de
todas as formas biográficas, mas como zona cinzenta de articulação
dos mais variados gêneros e estilos de narrar um “eu”
fragmentado.
Mac
e seu contratempo não é diferente. Nesse novo romance,
Vila-Matas cria um narrador (o Mac que intitula o romance)
que, velho e desocupado, resolve escrever um diário que antecederá
sua estreia na literatura. Esse caderno de principiante está cheio
de acontecimentos triviais, dada sua condição de homem comum,
morador há quarenta anos de um bairro tranquilo de Barcelona, até o
dia em que encontra em uma livraria seu vizinho Sánchez, “famoso
escritor de Barcelona”. Ao ouvi-lo se lamentar sobre o tempo, o
esquecimento e, sobretudo, sobre um romance ruim, escrito em início
de carreira, Mac decide reescrever esse livro julgado imperfeito e
esquecido até mesmo por seu autor que, por considerá-lo tão ruim,
chega a achar que outra pessoa o escreveu e não ele.
Está
dado o pontapé inicial para uma comédia tão rocambolesca quanto
melancólica, que trabalha com a ideia da repetição e defende que
escrever é, de fato, repetir-se, e que a criação literária é
sempre a evocação de algo que já foi lido e esquecido. Nessa
direção, o diário de Mac vai se tornando, aos poucos, uma
compilação de comentários de outra obra de ficção, em um
infinito jogo de espelhos.
E
se em “Bartleby & Companhia”, alguns autores
escrupulosos alegavam largar a escrita por temer a repetição, uma
vez que já está tudo dito e as palavras nada mais podem dizer; em
“Mac e seu contratempo” a repetição é não apenas um elogio
aos que chegaram antes, mas a própria ideia de que ninguém chegou
antes o suficiente, pois sempre haverá um modelo ao qual se
reportar. É por esse caminho que a escrita de Mac (e do próprio
Vila-Matas), no lugar de se fechar para desenvolver apenas suas
memórias e experiências pessoais, acaba se abrindo, para ecoar as
histórias dos outros.
Mas
se tudo em literatura é repetição, de que forma o autor deve
acessar os tesouros ocultos da tradição, sem que sua leitura se
torne enfadonha? Para Vila-Matas, essa forma é o humor, única força
capaz de transformar um manual erudito de citações em algo
despretensioso de ler. Mac e seu contratempo é um livro
divertidíssimo: suas referências estão a serviço da leveza e da
desenvoltura, e não engessam o texto. Ao contrário: pelo filtro do
humor, as referências funcionam como um acúmulo apontando para uma
faceta do personagem, talvez a principal: a sua paranoia. Mac é um
sujeito deliciosamente paranoico, que pauta seus dias de acordo com o
horóscopo do jornal e acredita ser sua missão reescrever o livro
renegado por Sánchez.
No
fundo, o novo romance de Vila-Matas é uma grande homenagem à
leitura, pois, assim como Mac, todo leitor é, por definição,
alguém que modifica aquilo que lê, no sentido de moldar o texto às
suas próprias impressões e experiências pessoais. E se cada pessoa
pode se tornar várias pessoas ao longo da vida, em cada ponto do
tempo é possível encontrar um texto diferente no mesmo texto. “A
mesma cerveja, só que diferente”, dizia o antigo anúncio de
bebida. Eis a beleza da repetição, segundo Vila-Matas. Eis a
beleza da vida.
Mac
e seu contratempo
Enrique
Vila-Matas
287
páginas
Editora
Companhia das Letras
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Enrique
Vila-Matas nasceu em
Barcelona, em 1948. Autor de diversos títulos que incluem romances,
contos e ensaios, além de textos híbridos que mesclam diferentes
gêneros, sua obra recebeu prêmios como o Herralde e o Rómulo
Gallegos e foi traduzida para mais de trinta idiomas. Entre seus
principais livros estão Bartleby e companhia, História abreviada
da literatura portátil, Suicídios exemplares e Doutor
Pasavento. Fonte: Site da Editora Companhia das Letras.
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Tadeu
Sarmento é autor de Associação Robert Walser para sósias
anônimos e E se Deus for um de nós?, entre outros.
Ganhou o II Prêmio Pernambuco de Literatura e o Prêmio
Governo de Minas Gerais de Literatura de 2016, com Um Carro
Capota na Lua, publicado pela Tercetto . Em 2017,
conquistou o 13º Prêmio Barco a Vapor, com o juvenil O
Cometa é um Sol que não deu Certo, publicado pela Edições
SM.