por Rebeca Gadelha__
Artista: Reinforced |
A
certidão de nascimento diz São Gonçalo, embora mãe jure que o
hospital ficava na capital carioca, a data é marcada pela
melodia “As entradas do meu rosto/ E os meus cabelos brancos/
Aparecem a cada ano/ No final de um mês de Agosto”
canta Paula Toller na canção que ficou popular no final da década
de 1980. Ainda cedo mãe voltou para o Ceará — sua terra natal —
“eu não podia continuar num relacionamento desses” era o que
dizia sobre a separação. Talvez por não ter para onde ir, voltou
para a casa dos pais, onde ainda moravam duas de suas irmãs, ambas
esquizofrênicas, foram estas pessoas que me criaram, já não tenho
muitas lembranças desta época em si — a infância — quase tudo
virou névoa. Quem foi meu pai? Não sei, não o conheci, quer dizer,
sei quem ele é, o vi, mas não temos convivência suficiente para
dizer que o conheço (se é que um dia chegamos a conhecer alguém de
fato), o que sei sobre ele é pouco: é oficial da marinha, hoje
aposentado, não concluiu o ensino médio, comprou uma boa
falsificação de diploma, tão boa que conseguiu cursar alguns
semestres de pedagogia numa universidade particular. Mãe foi um
pouco diferente: tentou concluir o ensino médio e conseguiu, através
de um supletivo, estudando a noite enquanto trabalhava, depois dos 40
alimentou o sonho de cursar medicina. Encorajo mesmo sabendo que ela
não gosta de estudar. Moramos juntas, as tias doidas se foram com a
avó depois que vovô morreu, deixaram montes de problemas para trás
e não falam mais comigo: nada como uma herança para separar uma
família. A cabeça de mamãe se desbaratou também, talvez seja a
loucura da família começando a se apresentar, ela trabalha em um
posto de saúde, ganha pouco, mas passamos bem, tenho meus próprios
bicos, não gosto de pedir dinheiro. Trabalho com diagramação de
livros, arte digital, edição de vídeos, dou aulas, articulo aqui e
ali com coletivos literários da capital. Crio cães, gatos e
problemas, não necessariamente nesta ordem. Escrevo palavras soltas,
desenho linhas sem sentido. Na biblioteca, mergulho nas páginas
velhas de livros esquecidos nas prateleiras. Corrói-me a falta de
não sei o quê, uma vontade antiga de voltar para algum lugar que
nem sei mais se existe: sumiu, quando as loucas sumiram, tudo sumiu
junto — restou esta vontade de quedar o corpo em alguma paragem
desconhecida, algum canto que me receba com a sensação de retorno.
– Quero
voltar para mim.
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Rebeca
Gadelha nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na
companhia dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista
digital, é apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem
medo de avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é
fígado. Foi responsável pela diagramação, ilustrações e
concepção visual em Manifesto Balbúrdia Poética: 80 tiros (CJA
Editora),
Coordenação, Designer e ilustrações em Laudelinas (Editora
Nada Estúdio Criativo), participa da coletânea Paginário,
publicada pela Editora Aliás. Atualmente escreve para as
revistas do Medium Ensaios sobre a Loucura e Fale com Elas
sob o pseudônimo de Jade .