por Ângelo Fábio_
Fotografia: Rogério Alves |
Em
dias de pandemia abro um trânsito em estado de revolução. Um
diálogo franco com o ator, diretor e jornalista Júnior Aguiar.
Conversamos sobre a Trilogia Vermelha, um espetáculo dirigido e
atuado por ele. Falamos ainda de política, do esfacelamento do Ministério da
Cultura e da produção de conteúdos em tempos de crise.
1)
Como nasce a Trilogia Vermelha?
Tudo
começou há quase 15 anos, quando Jomard Muniz de Brito me presenteou com o livro Cartas ao Mundo, organização de Ivana
Bentes, revelando centenas de cartas escritas por Glauber Rocha. Uma
delas, endereçada para Jomard, escrita em 1966, era de relevante
valor histórico. No mesmo momento de tomar consciência deste
documento memorável, constatei que ali residia o poder de uma grande
dramaturgia brasileira. Nascia a ideia de fazer um espetáculo
celebrando a vida e a obra do aclamado cineasta baiano, vinculado às
memórias históricas do Brasil dos últimos tempos. Teatro épico,
político na mais alta voltagem, vertiginoso na “memória do
transe” glauberiano, decorrente de sua impressionante genialidade.
A primeira obra ganhou corpo com o encontro, em Portugal, com Marcio
Fecher e eu, participando de uma produção internacional. A pesquisa
nos faz tomar consciência da história da democracia no Brasil e na
América Latina. Penso, na sequência, que o projeto é maior do que
conceber apenas um espetáculo. Daniel Barros é convidado a entrar
no jogo. O instigante desafio de criar uma Trilogia ganha forma e
ocorre a revelação do conjunto de personagens. Paulo Freire surge
como pernambucano e verticaliza o discurso progressista e
revolucionário trazendo para o debate o tema da educação. E, por
fim, contemplando o campo da espiritualidade, a história do
arcebispo de Olinda e Recife Dom Hélder Câmara, quatro vezes indicado
ao Prêmio Nobel da Paz. Arte, Educação e Espiritualidade como
dimensões a serem trabalhadas no teatro contemporâneo realizado em
Pernambuco celebrando a vida de três grandes nordestinos
reconhecidos internacionalmente. O vermelho, como definição plena
do título do projeto, pode simbolizar a luta diária do coração
humano em abrigar os sentimentos mais vivos da humanidade, como o
AMOR, a PAIXÃO e a INDIGNAÇÃO”. O símbolo da Trilogia Vermelha é
o inseto cochonilha - de onde se extrai o corante vermelho. A
realização final é do Coletivo Grão Comum, em parceria com a Gota
Serena (do ator Marcio Fecher) e a Cena OFF (do ator Daniel Barros) e
outros artistas no campo musical como Juliano Muta, Leonardo Vila
Nova, Tiago West, Otiba, Felipe Silva, Fabio Silva e Geraldo Maia,
dentre outros convidados e apoiadores.
2)
Da época que foi pensada e conceitualizada a proposta, quais
diferenças em tempo e espaço de que surgiu o projeto, com o atual
momento que vivemos no país?
Desde
o princípio a Trilogia Vermelha pareceu atual. Sempre atualizamos o
discurso, as piadas, as referências factuais com a realidade do
momento das apresentações. E, no plano geral, o que de fato
impressiona foi enxergar os paralelos históricos, as mesmas
discussões e estagnações políticas, os ciclos de composição e
decomposição dos avanços democráticos. Agora, com essa
indescritível situação política de desmonte e coerção, a arte
ganhou uma dimensão gigantesca no campo das resistências e das
guerrilhas culturais. Arte viva, conectada e buscando reverberações
nas plateias adormecidas e anestesiadas de desesperança. A Trilogia
Vermelha parece não esgotar sua função social e estética de dar
acesso a memória e a verdade dos fatos da nossa história.
3)
Em 2013 inicia-se o período do pré - golpe do governo Dilma
Rousseff. Em 1º de abril no ano de 1964 é destituído o
ex-presidente democraticamente eleito, João Goulart. Quais relações
que você faz entre os anos de chumbo, pré-golpe, golpe e pós-golpe?
São
as mesmas forças lutando contra e a favor das transformações
sociais. Não priorizando agendas humanas para focar agendas
econômicas sempre ditando as regras do jogo. Há raízes profundas
de desigualdades e a luta incansável é passada de geração para
geração afim de atingirmos aquilo que chamamos de Justiça. O
direito de ter as mesmas possibilidades mínimas para viver e para
construir a realidade deste país, modificando suas estruturas
seculares de opressão. Não sou partidário do PT, mas acredito na
luta histórica do partido como agente transformador. Mas a luta das
esquerdas latino americanas é maior enquanto causa e enquanto
discurso, enquanto ética e ação.
4)
A Trilogia Vermelha é um projeto que conscientiza e esclarece as
consequências da ditadura militar, e também um reflexo da atual
situação do país? Existe algum receio de sofrer retaliações ou
algum tipo de pressão diante do cenário de ódio fomentado por
grupos conservadores?
Não
temos receio. Em todos esses anos de criação e contato com o
público e as instituições, fomos sempre acolhidos e celebrados. Na
verdade, estamos nos sentindo mais fortes do que nunca para continuar
a reverberar a fala dessas personalidades memoráveis; o melhor que
já existiu no Brasil através das artes cinematográficas, da
educação progressista e da renovação da igreja católica na
América Latina.
Fotografia:Diego Di Niglio |
5)
O triste e atual cenário político do país tem inspirado artistas a
denunciar os descasos cometidos pelo governo. Você tem em mente ou está
desenvolvendo um outro projeto que fale dos tempo atuais?
Não.
Após a Trilogia Vermelha. que tem como objetivo a essência de
desbravar o campo da atuação, fazer e refletir um teatro político,
social, com viés pedagógico, acho estimulante aprofundar novas
áreas de atuação e focos diversos. Mas estou projetando para o
futuro um espetáculo sobre Joaquim Nabuco e propor “uma
arqueologia do pensamento progressista brasileiro”.
6)
Como o teatro, a cultura e os artistas podem "mudar" ou
gerar outras vertentes de pensamentos para que venham dias melhores?
O
teatro, as culturas e os artistas são “poderosos transmissores”
para influenciar, debater, revelar, inspirar o mundo a evoluir e a
pensar suas tantas realidades e honrar a memória dos acontecimentos
… E a imaginar todas as possibilidades de futuros, o teatro
espelha, projeta, ancora, evidencia, aproxima e faz encontrar, é a
própria arte do encontro social, a eterna ágora, espaço sagrado,
grande arena dos sonhos e das utopias, vitalizando e deixando
orgânico a busca pela essência da verdade. Que o diálogo seja
usado como ferramenta de convivência, que a liberdade seja um
princípio inviolável, que o público seja respeitado e provocado a
sentir e a pensar o quanto é impressionante saber que a arte existe
e pode nos fazer revolucionar e amar um mundo mais bonito, e
infinitamente mais profundo em significados e signos da nossa
expressão no mundo.
7)
Estamos vivendo situações de intolerância contra a classe
artística e suas obras. Qual posicionamento você acredita que
devemos tomar diante tamanha violência? Sermos passivos e mais
pedagógicos? Bater de frente? Ou se omitir e não produzir
conteúdos?
Resistir,
argumentar evidenciando os absurdos, Defender a relevância de uma
sociedade que preserva a arte de seu tempo e evidencia o quanto é
imprescindível uma nação que se manifesta livremente. E
nortear-se pela moderna Constituição de 1988, recorrer aos agentes
democráticos e aos poderes instituídos na defesa destas leis.
8)
Nas esferas municipal, estadual e federal, o MINC desde sua formação,
em 1985, no governo de José Sarney, sempre foi um importante gerador
de incentivos e complementos nos campos econômico, educacional, da cidadania e de uma "identidade nacional". Hoje, voltamos ao
limbo dos anos 1990, quando o Minc teve seu fim decretado na era
Collor. No governo Bolsonaro estamos em uma situação semelhante. Como
você visualiza a atual conjuntura? Como as “utopias incendiárias
de esperanças” podem abrir outras perspectivas, além de um
cenário de tantas perdas?
A
atual conjuntura é desalentadora, é uma trágica realidade, um
pesadelo. A história ensina que nada permanece, tudo chega ao fim e
os tempos se renovam, mesmo que sejam reconstruções do pó.
Acredito que estamos assistindo ao que o Brasil é nas suas entranhas
e nunca antes ficou tão claro o quanto a luta vai exigir união e o
poder organizado que emana do povo conscientizando de sua presença,
no poder que delibera seu futuro
9)
O vermelho é a única cor que biologicamente nos iguala uns aos
outros. Cor de nosso sangue. Então o que é a Trilogia
Vermelha nesses tempos de fúria?
A
trilogia é – reverenciando as palavras libertadoras de Glauber
Rocha – uma “utopias incendiárias de esperanças”.
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Sobre
Júnior Aguiar / Coletivo Grão Comum é jornalista, diretor, ator e
pesquisador da área de Comunicação Social, habilitado em
Jornalismo, especializado em Docência no Ensino Superior. É o
coordenador pedagógico da Casa de Xamanismo Centro da Terra. Com 37
anos de idade, e 23 anos de carreira no teatro, fundou com outros
artistas, em 2008, o Coletivo Grão Comum, com vasto repertório de
espetáculos premiados e apresentados no Brasil e no Exterior.
Atualmente, desenvolve a pesquisa da Trilogia Vermelha, no qual
encenou e atuou nos três espetáculos. As obras tiveram grande
repercussão por reagrupar e reler a importância de consciências
locais, regionais, nacionais e internacionais, como foi a vida e obra
de três emblemáticos nordestinos mundialmente reconhecidos: o
cineasta baiano Glauber Rocha, o educador pernambucano Paulo Freire e
o bispo cearense Dom Hélder Câmara. Em 2017, convidado pelo SESC,
ministrou dentro das comemorações da 10º Mostra Capiba de Artes, a
oficina O Solo do Ator: o que você tem a dizer?
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Ângelo
Fábio, 1981.
Artista interdisciplinar e produtor cultural que trabalha com o
cruzamento das linguagens cênicas. Fundador do
Pós–Traumático,
Hemisférios Itinerantes
(AR/BR) e
Caosmo Cia. Experimental.
Estudou jornalismo de
investigação na Universidade
Popular Madres de la Plaza de Mayo
e Licenciatura Direção Cênica (UNA), Argentina, porém
não concluiu os estudos universitários. É
idealizador do Cineclube
Universo Paralelo e co-idealizador da
Mostra Periférica,
em Camaragibe.
Também já foi diretor do Cine
Teatro Bianor Mendonça Monteiro (2017/2018),
produziu o livro Bianor – Trajetórias e Memórias
e promove o Encontro das
Artes Cênicas de Camaragibe
(2017/2019). Como ator e diretor, integrou diversas companhias
artísticas no Brasil e outros países.