por Adriane Garcia___
Tema
tão antigo quanto atual no Brasil é a questão da mestiçagem.
Assunto também espinhoso, já que pelo viés da mestiçagem pode-se
chegar à falsa conclusão de que há ou já houve democracia racial
no país. Não existe relação harmoniosa entre negros e brancos
quando o encarceramento no país e o genocídio da juventude mostram
números alarmantes de pessoas negras vitimadas. O racismo no país é
absolutamente escancarado. A despeito de todo o processo de mistura
das etnias, indígena, negra, asiática, branca, o Brasil introjetou
os valores do europeu: branco, cristão, masculino, heterossexual
como o modo de vida válido, pois é aquele que ocupa as posições
de poder e elaboração das regras.
Assim,
da mesma forma que a miscigenação é uma marca da sociedade
brasileira, ela funciona muito mais para apagar as origens e a
memória étnica de cada um do que para fortalecer a busca das
raízes. É tantas vezes usada como argumento para negar o racismo, o
que acaba por fortalecê-lo, já que o “branqueamento” da
população quis se estabelecer historicamente, inclusive como
política pública. Esse branqueamento não se dá somente pelas vias
biológicas, mas por labirintos psicológicos em que todo um padrão
de beleza e comportamento é ditado cotidianamente, há séculos, nos
meios disponíveis de comunicação e repetidos nos gestos da
sociedade. A mensagem é a de que somente o branco é bonito,
competente, perfeito, superior. Essa mensagem é um mecanismo
poderoso que precisa ser desmontado, pois trabalha para impedir a
tomada de consciência do valor próprio de cada etnia e mantém o
status quo excludente, impedindo que as minorias exijam e obtenham o
que lhes é de direito.
A
desigualdade social no Brasil está intimamente ligada à questão
racial, refletindo o imperdoável processo de escravidão e a forma
negligente com que o Estado proclamou a abolição, sem indenizar os
escravizados e suas famílias e sem criar mecanismos de inclusão
para aqueles que deveriam ocupar os postos de trabalho assalariados,
mas cujas vagas foram reservadas para a imigração branca. O país
de hoje colhe as consequências de seu passado escravocrata e admitir
o racismo para poder lutar contra ele é tão urgente quanto
encontrar na miscigenação o orgulho por ter uma ancestralidade não
branca. Pensar a miscigenação é pensar também o colorismo, afinal
o racismo no Brasil se estabelece e se estrutura em torno do visível,
quanto mais melanina possui a pele de um ser humano, mais ele é
excluído nas relações sociais e mais está fadado a ser vítima da
necropolítica estabelecida no país.
A
poesia anda incomodada com tudo. Do incômodo, as poetas e os poetas
escrevem sobre os temas mais variados. Neste A negra cor das
palavras, de Alexandra Vieira de Almeida, o primeiro poema, Sobre a
beleza do negro, traz a procura da poeta desta miscigenação em si
mesma, das raízes negras deste eu-lírico, dos traços físicos, da
presença dos orixás. “Minha escrita é meu orixá”, aponta em
outro poema, no desdobramento da leitura. Assim, sol e lua, dia e
noite, a poeta olha pelo antagonismo e pela complementariedade das
cores.
Metalinguisticamente,
Alexandra Vieira de Almeida usa o preto como a tinta (força), “A
negra cor das palavras” e o branco como a cor da página vazia;
assim como o esmaecimento da cor está ligado à perda da memória.
Também há o aproveitamento das muitas expressões em que a palavra
negro/negra é utilizada ou do destaque às substâncias escuras como
chocolate, tulipa negra, a bile negra (melancolia), o pássaro negro.
A escuridão é uma condição para o laboratório de criação dos
seres, assim como a penumbra acolhe os encontros.
Alexandra
Vieira de Almeida conta com muitas imagens poéticas, como nos versos
“Não digo o verbo de espinhos/ qual sangue que fere o tempo/ Digo
a palavra bruta/ que tece os terçóis do sol”. Há nos versos uma
profusão de cores e formas, frequentam-nos o sol, a lua, mandalas de
rosas, vento, cidades submarinas, florestas, faróis, elefantes,
labirintos, arco-íris, cavalos brancos, submarino, carvão, morcegos
soturnos. A cor negra explorada para a subjetivação.
O
livro traz a recorrência maior de três cores, preto, azul e
vermelho. A violência contra o homem negro destaca a cor vermelha
(de sangue) como sinal da morte, do racismo e da intolerância. Há
também a recorrência da palavra açoite. Na forma, os poemas de
Alexandra Vieira de Almeida podem trazer a clareza dos versos
objetivos, assim como trabalhar com a exploração do simbólico,
sentidos ocultos, a sugestão das coisas, a correspondência delas:
“O fogo ardia por dentro/ Os seres paginavam um mistério/ Minha
visão era um olho cego/ Como contornar o horizonte?”
Em
O Arco e a Lira, Octavio Paz escreve que “A revelação não
descobre algo exterior, que estava aí, alheio; o ato de descobrir
entranha a criação do que vai ser descoberto: nosso próprio ser.
Nesse sentido, pode-se dizer, sem temor de incorrer em contradição,
que o poeta cria o ser”. No caso de A negra cor das palavras, a
poeta parte de uma reflexão sobre a mestiçagem para descobrir-se a
si.
SOBRE
A BELEZA DO NEGRO
A
negritude em sua essência
não
igual ao branco da página
mas
à construção do sentido
ao
verbo em toda sua inteireza
Nas
cavernas da memória/esquecimento
o
negro se traduz nas pinturas mais inusitadas
Os
complementos como num jogo de xadrez
num
duelar mais original, sem mortes súbitas
mas
as peles que se revestem
na
conjuntura do mundo
As
faces se intercalam
murmurando
um mosaico de vozes
O
branco e o negro
são
a mistura
que
convive no meu peito aceso
pela
chama da miscigenação
pela
vida que se abisma em mar de desejos
As
peças são moldadas pela visão
de
um paraíso em sol do sim
de
um deserto/cidade
atropelados
pela memória cinzenta
que
obscurece as lãs das nuvens mais velhas
Quero
o retrato em preto e branco
posto
ao meu lado
para
me lembrar de minha negritude
que
se enrola nos meus cachos negros
e
no meu nariz de batata
Vivo
o agora
que
é a tintura claro-escura
do
final da tarde, unindo os dois versos
as
duas cores paridas pelo sol e pela lua
pelo
dia e pela noite
O
meu verso tem que ser força negra
que
não arraste o branco da página
para
o caos
mas
para uma ordem
dos
amantes
do
fraterno jogo que irrompe do vazio
fazendo-se
lenda da eterna palavra.
O
AVESSO DA HISTÓRIA
No
branco da manhã lépida
Escondo
uma história da cor da noite
Em
que o avesso dos dias
Costura
a urdidura de um sol negro.
***
A
negra cor das palavras
Alexandra
Vieira de Almeida
Poesia
Penalux
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Adriane
Garcia
nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de
pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por
estudar sobre a desconstrução do Arraial
do Curral del Rei
e a construção da primeira cidade planejada da República, com
destaque para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido
sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para
as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os
livros Fábulas
para adulto perder o sono
(vencedor do Prêmio
Paraná de Literatura,
2013, ed. Biblioteca
do Paraná),
O
nome do mundo (ed.
Armazém da Cultura,
2014), Só,
com peixes
(Ed. Confraria
do Vento,
2015), Garrafas
ao mar
(ed. Penalux,
2018).