por Alessandro Caldeira__
V
Percebi
que estava escorrendo algumas lágrimas novamente pelo meu rosto, mas
não queria chorar e tal. Daí comecei a andar um pouquinho e tudo
mais. É que parece que quando a gente se movimenta as lágrimas
param, não sei se já aconteceu com você.
Fui
andando bem devagar para lugar nenhum e tudo. Se você não sabe, eu
tenho um jeito bem esquisito de andar. Não é que eu ando torto,
mancando ou algo parecido. Nada disso!
Mas
eu ando contando os passos, como se não quisesse me perder e tal.
Olhando para o chão e contando, com bastante cuidado: um, dois,
três, quatro, cinco, seis... até que em algum número eu paro de
contar, volto tudo de novo: um, dois, três...
A
lari diz que eu deveria me tratar, mas não acho. É que a lari não
entende, se eu não contar, me perco todinho e tal, além do mais,
serve muito bem para evitar pensar em coisas.
Em
mamãe, por exemplo, que com certeza irá falar o quanto sou
irresponsável e me comparar com algum primo qualquer. “Você nem
parece da família, Rafael”, ela diz.
Não
sei que espécie de prazer a mamãe tem de ficar me comparando com
eles e tudo mais, sabe? Acho que, no fundo, nem ela acredita tanto
assim na família, de tanto que a usa só para uma coisa: dizer que
não sou tão agradável assim.
Eu
não ligo muito, se você quer saber a verdade. Talvez se eu me
importasse um pouquinho, teria um espaço na família, sabe? Mas a
verdade é que eu sempre fui muito debochado. Não é que eu goste
disso e tal, mas nunca me preocupei muito com as aparências.
Sabe,
às vezes aparece uns amigos de família lá em casa e tudo mais, um
mundaréu! Como eu nunca me sinto confortável com aquela gente, me
tranco no quarto.
Mas,
meu deus! Quanta bobagem naquelas conversas que eu ouço enquanto
estou trancado no meu quarto. É que eles se reúnem apenas para
falar do quanto as finanças estavam indo bem e toda a minha família
dando risadinhas e tal. Porra! Quanta humilhação daquela gente!
Quer dizer, eles se humilham e eu tenho de me sentir envergonhado por
não ser como eles?
Nunca
fomos uma família rica e tal, nunca tivemos tempo para ir à casa
dos outros para falar de como estávamos indo, mas a aparência é
importante para a minha família.
“Meu
filho, vai cumprimentar as pessoas”, mamãe ficava desesperada
quando eu não saía do quarto, ela se importa com a impressão que
eu dava para aqueles canalhas.
Por
isso sempre insistia para eu sair do quarto, porém, não prestava
atenção, o que fazia ela se sentir mais envergonhada. Às vezes eu
tinha pena de mamãe. Mas eu não faço por mal. É que enquanto
aquela gente estava dentro de casa, não me sentia mais como um
morador, parecia que eles tomavam o espaço que deveria ser nosso e
tal.
Mas
a casa já não era minha, o assunto não era para mim, até o cheiro
me afastava daquelas pessoas e daquela casa. Me sentia mais uma vez
um inseto, só que incapaz de fazer algum zumbido no ouvido deles.
Quando
o que eu queria mesmo era incomodar todo mundo e gritar para que eles
parassem de serem escravos voluntariamente só porque os canalhas
falavam de dinheiro.
Minha
família acha que, assim, está abrindo portas, sabe? Mas o que eu
acho é que a gente só aparentava mais pobreza com toda aquela
situação.
Como
se não bastasse, veja só: os canalhas acreditam que são líderes.
Eu não acho que eles são, se você quer saber a verdade. O que eu
acho é que eles foram espertos de juntar um monte de gente miserável
para mandar e desmandar.
Imagina
alguém se tornar líder antes mesmo de conhecer o que
verdadeiramente são e tal?
Eu
não acho que um líder seja melhor do que as pessoas em volta dele.
Quer dizer, quando você se torna líder as pessoas sempre são tão
melhores quanto qualquer um e tudo mais. É bom aceitar nisso. Só
que esses canalhas só são líderes do dinheiro dos outros, isso
sim.
Me
lembro de mamãe ficando brava comigo quando eu caçoava deles
enquanto espiava nossa família conversando.
— Olha lá, mamãe, nossa família só esperando para abocanhar um
pouquinho o dinheiro daqueles velhos.
— Calado, menino! Você deveria estar fazendo o mesmo. Tinha que
aparecer para essa gente rica.
Aparecer?
Aparecer é o cacete! O que eles querem mesmo é que a gente lamba as
solas dos sapatos deles até dizerem: “pronto, garoto! Agora você
pode pisar no mesmo chão que nós pisamos”
Eles
são o sanguessugas e nós os animaizinhos deles.
VI
— Rafael, o que você está fazendo aí sentado como se estivesse
abandonado, garoto? Não foi à escola, não?
A
professora Célia estava a fim de papo e tal, mas não queria
conversar, mal olhei para ela e saí correndo. Eu queria ver mais da
libélula que havia repousado ao meu lado. Eu acho que não te
contei, mas a libélula é o meu inseto preferido.
Confesso
que tenho um pouco de medo daquele corpo longo e as formas dela
enquanto voa como se estivesse contando o tempo, sabe? Às vezes ela
aparecia lá no quintal de casa e tudo. Eu gostava de olhar, mas toda
vez que aquele inseto se aproximava de mim, meu deus do céu! Quanta
agonia.
Eu
corria para perto de mamãe desesperado pedindo para que ela
afastasse aquele troço gigante de casa, mas ela sempre me repreendia
dizendo que não “tinha como controla-las! Elas viriam toda vez que
eu saísse de casa”.
Depois
de um tempo comecei a me acostumar com aquele inseto gigante indo
todo dia em casa, até passar a admirar e tudo. Quer dizer, me
impressionava a forma leve como ela voava, me intrigava mesmo, se
você quer saber bem a verdade.
Então,
assim que parei de correr me lembrei de um rio que estava bem
pertinho, às vezes costumava a pescar, mas nem sempre eu ia para
isso; a pesca, na verdade, só era uma desculpa para eu sair de casa
e encontrar com alguma libélula e tal.
Não
era difícil se encontrar com alguma, bastava você ficar ali sentado
que parecia que uma delas notava a sua presença e já se colocavam a
fazer seu show, e eu ficava bem quietinho enquanto observava aquela
espécie de dança, sabe? Tenho que lhe dizer: as libélulas são
criaturas bastante exibicionistas.
Me
deitei no mato e fiquei esperando a boa vontade de alguma delas
aparecer, como eu imaginava, não demorou muito e então me debrucei
com a cabeça apoiada em uma das mãos e prestei atenção em cada
movimento como se fosse algo novo para mim e tal.
Não
sei, mas tive a impressão de certa intimidade com aquele bicho e
tal, como se fizesse parte de um lugar dentro de mim e tudo mais.
Assim, mais uma apareceu e passou a fazer parceria com a primeira.
Provavelmente
você vai me achar louco, mas não queria tanta intimidade assim, não
queria que as libélulas tivessem confiança em mim, sabe? Eu gostava
delas, mas não queria me aproximar e, então, elas não deveriam
fazer o mesmo.
Enquanto
isso, a cena do padre colocando a mão em mim veio novamente me
perturbar e tal. Não consegui me segurar, queria sair dali afastar
qualquer coisa na minha cabeça. “Vocês jovens mal sabem o que é
o amor”. Como assim? O que ele quis dizer?
Era
sobre Deus e tal e toda aquela bobagem? Não, não era, não podia
ser. Aquele charlatão não sabia de nada sobre isso, não sabia de
nada sobre Deus e não tinha o porquê falar para uma pessoa como eu
sobre Ele, eu não acredito. Eu não acredito em nada disso e tal.
Deus
é silêncio, eu só acredito nisso, eu só acredito nesse silêncio,
seu velho estúpido! Ele não tinha nada de silencioso, como pode
falar sobre qualquer coisa que nem conhecemos? Mentiroso! A morte é
mais verdadeira.
As
libélulas não paravam de dançar e eu queria afastá-las todas de
mim. Não eram mais as minhas amigas, tinha me cansado delas, queria
que fossem embora. “Não se pode controlar”, será que mamãe
tinha razão?
O
corpo delas se moviam cada vez mais rápido e tal, eu não conseguia
tirar os olhos e comecei a ficar zonzo e gritar com elas tentando
convencê-las a se afastarem de mim e tal.
— Saiam daqui! Eu já falei que não quero mais vocês. Por que se movem
como se estivessem carregando o nosso tempo? Como podem achar que tem
esse direito? Meu Deus! Parem com isso, por favor! Não quero
crescer desse jeito medonho que vocês crescem!
Mas
elas não paravam, continuaram dançando como se fossem algum tipo de
ponteiro de relógio ou algo assim, a facilidade delas de voar me
deixava atormentado e tudo. De alguma forma, eu sou inferior a elas.
Eu
não queria mais pensar, não queria mais ter aquela cena do padre na
minha cabeça, não queria ver libélula. Queria voltar para casa,
voltar a ver a lari e a mamãe reclamando de meu sumiço. Mas eu
estava tão longe de casa. Tão longe
Alessandro
Caldeira — Jornalista com aposentadoria precoce, se formou melhor
no ramo da timidez, mas desbocado (não é, Clarice?). Para livrar de
meus traumas vejo futebol com frequência, leio compulsivamente
sabendo que nunca vou ser um daqueles personagens já que Belchior
está constantemente nos meus ouvidos, dizendo: a vida realmente é
diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior.
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