Lambe, lambe!, uma crônica de Sandra Modesto

por Sandra Modesto___

Tela de Edward Hopper


Depois de lamber teus pés, de lamber tuas coxas, de lamber teu ventre, de lamber teu sexo, revirando as fotos, encontrando fatos, lambi o que eu mais queria.

Lambi tua alma.

Era assim que eu imaginava ser lambida, ninguém sabia disso. Eu tinha apenas treze anos de idade, me via no espelho da cômoda com o toucador, rebocando a sensação imersa ao espaço, dividido por tantas meninas.
 Minha mãe dizia que eu ficava trancada no quarto e que fazia mal.
Mal sabia ela, bem, mal eu sabia.
O tempo foi passando e o lambe- lambe era uma diversão moderna naqueles anos dos fotógrafos engraçados. A gente se vestia com o melhor estampado e os retratos perdidos em ângulos longe dos digitais.
O pastor da igreja falava muito alto, as orações me assustavam e minha avó Iracema me puxava ao caminho do senhor, eu só tinha quatro anos eu só lambia a chupeta porque eu não mamei no peito e chupei aquele troço enquanto minha vó vivia.
Com pouco mais de quarenta anos, vó Iracema morreu. Eu ainda tinha quatro anos, o tempo foi lambendo as nossas idas aos cultos, o curto período vivido entre a primeira neta e a vó com nome do livro de José de Alencar.
Vó Iracema tinha os traços puxando para os de uma índia, passava e lavava roupas pra ganhar o dinheirinho dela e era pra os moços que trabalhavam com camisas e calças sociais, iguais aos dos liberais.
 Mas uma frase não me saiu nunca da vida lambida:
— “Nunca deixam minha neta chorar, dos olhos dela não pode sair uma lágrima sequer”.
Mas minha vó morreu e eu chorei muito na vida escondida ou estampada em cenas com poucos ou muitos espectadores.
 O forrobodó (pão doce) servido de manhã pra abastecer a fome rumo à escola era maior lambida que eu degustava. Com minha mãe servindo a gente e meu pai olhando de soslaio.
Não tinha nem muito que pensar, eu nunca tinha visto uma espingarda, um revólver, só nos filmes de guerras no cinema, morria de medo daquilo. No fundo o que eu mais desejava mesmo, era não cair na mesmice.
Como assim? Os anos sessenta, setenta, oitenta, noventa, foram me ensinando a ser uma “menina” com os olhos marejados pelas lambidas perdidas.
Eu sei que nem sabia meu lugar. Consegui umas vindas e resistindo ao século 21 o mais doloroso e ao mesmo tempo divertido, permitindo- me a algumas interrogações. De perguntas em perguntas tive que lambuzar respostas. Por quanto tempo ofuscando, por quantas noites mal digeridas, por tantos e tantos sorrisos falsos. Ela procurava nas entrelinhas o eu que já não existia. Pensando que é fácil suportar do lambe- lambe aos panos em planos ocultos e difusos? 
De repente resolveu renomear os escritos cuspidos em desafios. Até decidir se despir fantasmas da memória. Sim, contou outra história.
A cidade amanhecia correndo, as pessoas caminhando com cachorros, o pronto- socorro lotado, eventos publicados na internet, um bando de gente online. E agora? Dar alma ao capeta ou enfrentar tanta merda? Bom, podia não ser tão difícil uma lambida por vez. Por vezes tentou chamar a avó, por vezes cansou de ser só, só mais uma embaraçada. As notícias, os rumores, os horrores, os aflitos, ovos fritos no café da manha, preto puro, amargurado com tanta incompreensão. Coração movido à bateria, carregador de celular destemendo sua relevância.
O mundo pedia sossego. Ela pedia um nome. Gostava de olhar paisagens. Não desenhava um rabisco sequer. Mas a vida pedia passagem. Deixa a passagem chamar Valentina? Valentina sendo escrita extravasando lambidas na libido, nas estimas, estigmas, catarse, cartazes espalhados. Incontroláveis desejos invisíveis. Valentina tornou- se dona de um memorial vivo, vivacidade em não controlar os instintos, Teve um chefe que trancou a porta da chefia e queria um beijo de língua. Valentina fechou a boca correu e abriu a porta, fez o poder entender o devido lugar.
Nunca largar macho foi tão gostoso nesse episódio miserável antes dos anos dois mil.
Mas se quisesse contar sobre isso poderia. Preferiu o silêncio comendo respostas. Na noite fria sugando a língua pela primeira vez.

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Sandra Modesto é de Ituiutaba, Minhas Gerais, Graduada em Letras, publicou Acenda a luz (Prosa poética), Editora Kazuá, 2015 e Tudo em mim é Prosa e Rima, Editora Autografia, 2019. Autora de dois textos na edição (impressa) especial da Revista Philos: Releitura de Chico Buarque, em 2019. Cronista convidada do site Crônica do Dia. Mãe de Carla e do Gabriel.
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