Na
madrugada de 29 de abril, de 2003, encontrei João pela primeira
vez. Naquele instante eu esquecia todas as dificuldades de uma
gravidez de risco, as agonias financeiras e passava a considerar a
maternidade a estrada mais inimaginável que teria que desbravar. Um
filho vem como um soco, uma brisa, um poema em eterna construção,
uma composição memorável de Bach. Aprendi nos últimos anos que
continuo sem saber de muita coisa. Tudo me surpreende nesse percurso.
Mas para os obcecados na romantização do papel da mulher nesse
contexto, deixo aqui o meu recado: esqueçam as receitas, as dicas
infalíveis de educação infantil, as fórmulas de adequação
social. Nada é fácil, nada é simples e corriqueiro. Não cabe a
ninguém monitorar, preconizar e defender um posicionamento único,
um papel social que amordaça a existência materna ou condiciona
tantas mulheres a exercer por “vocação” a necessidade de
responder a sua participação na sociedade concebendo um filho.
Senhoras
e senhores, parem de erguer suas velhas conjecturas. Não se
mobilizem para censurar escolhas individuais. Nossas histórias não
nascem de um roteiro de um comercial de margarina ou sabão em pó.
Tudo isso é superficial e não espelha os bons e maus momentos da
convivência familiar. Fiz escolhas, e por tudo isso o
primeiro compromisso com meu filho foi de não repetir o mosaico de
insanidades da minha formação.
Anos
de terapia me fizeram perceber que por vezes nos tornamos justamente
reféns do que Nietzsche enunciava: Aquele que luta com monstros deve
acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha
muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.
João
Pedro é minha pedra, meu astronauta, minha reflexão sobre fincar
afetos e desafiar o futuro. Quando descobriu meus vinis por volta dos
seis anos, não acreditava que dali se poderia ouvir música.
Coloquei um disco na radiola pra ele entender como a agulha
funcionava. Outro dia ficou encantado ao ouvir Ella Fitzgerald pela
primeira vez.
Nossos
gostos musicais se complementam no desejo de "viver" o
processo criativo do artista. E por tudo isso não se limita apenas
ao gênero musical. Nossa partilha é diária em meio a uma casa onde
se cultiva literatura e cultura cinematográfica. Costumo brincar que
João é a evolução da espécie. Ele traz consigo o compromisso de uma
geração de não se render ao discurso execrável da extrema
direita, e escancara sua identidade nordestina como bandeira de
resistência. Nas suas palavras o capitalismo "é um sistema do
foda-se todo mundo. Só quem ganha é quem é rico ou tem sorte."
JP
estuda filosofia com afinco “porque gosta de ir atrás das ideias
de cada um.” Sua timidez não esconde a capacidade de assimilar o
que é dispensável. Vivendo o turbilhão da adolescência, se
apaixonou pela música erudita com uma religiosidade incomum.
Pesquisou todas as escolas e revigorou minha devoção a figuras como
Philip Glass, Debussy e Mozart.
Neste
momento nomes como Aphex Twin e Squarepusher o fazem questionar e
amar conceitos da música eletrônica experimental. Nos seus 17 anos,
completados hoje, um mundo caótico se faz presente. Durante a quarentena, fotografou por diversas vezes, da janela do seu quarto,
toda a beleza do céu do Recife.
Nada é previsível, mas nossa jornada continua. E como tão bem ele destaca a citação de Heráclito: O homem que volta ao mesmo rio, nem o rio é
o mesmo rio, nem o homem é o mesmo homem.
A
quarentena continua. Quando tudo isso passar, iremos a
um concerto e vibraremos a cada nota, a cada gesto do maestro.
Parabéns,
João Pedro.
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Taciana
Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do
Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e
literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do
abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.