Todos estão surdos e o rei também.


por Taciana Oliveira__



No último sábado, 18/4/20, uma maratona de shows ganhou a internet e entrou para a história como a maior live já realizada, a One World: Together at Home. Organizada por Lady Gaga em parceria com a Organização Mundial da Saúde e a ONG Global Citizen, o evento reuniu celebridades e contou com a participação de grandes nomes da música internacional para compor um dos momentos mais significativos do ativismo musical. The Killers, Paul MacCartney, Rolling Stones e Andrea Bocelli são alguns que atenderam o chamado de Lady Gaga, que criou o “festival” para arrecadar fundos para compra de suprimentos para os profissionais e voluntários que trabalham arduamente no controle da pandemia do Covid-19. Em meio aos ataques do governo Trump, a OMS, um braço direito da ONU, procura conter os avanços da epidemia, e mais do que nunca necessita do apoio dos seus membros internacionais. A instituição não tem autoridade sobre territórios e não pode visitar qualquer nação sem ser convidada. Seus recursos provêm das doações de instituições de caridade e das contribuições dos Estados-membros.

No Brasil, o cantor e compositor Roberto Carlos prepara uma live para este domingo, com transmissão do Globoplay. Em fevereiro deste ano, em uma rápida entrevista publicada na revista ISTOÉ, antes de embarcar em um cruzeiro, o mesmo afirmou: “Acho que o Bolsonaro é muito bem-intencionado. Ele tem tido muita dificuldade com o pessoal em volta dele. Mas acho ele bom e já tem conseguido algumas coisas. Vamos torcer pelo país, que está na mão dele”.
Roberto quase que repetiu as mesmas palavras em um novo depoimento para a Folha de São Paulo: "Bolsonaro é muito bem intencionado, mas que tem tido muitas dificuldades com quase todos que estão a volta dele. Sérgio Moro e Guedes acho que estão sempre colaborando. Ele está tendo muita dificuldade em realizar o que propôs. Eu torço para o Brasil, então torço para que ele faça o que pretende fazer e que disse que ia fazer".



Hoje, 19 de abril de 2020, o cantor completa exatos 79 anos de idade. É improvável que alguém da minha geração não tenha esbarrado em algumas das suas canções, ou mesmo no famigerado show de natal apresentado na Rede Globo. São tantas emoções, Roberto, que não se pode aceitar um comportamento tão omisso nas diversas questões que assolam o  país nesse momento. O texto que escrevo  talvez nunca chegue a você, mas tenha ciência que falo sobre alguém que de alguma forma participou não só da minha história, mas da de milhões de brasileiros.  





Roberto, o show já terminou. Vamos voltar a realidade? Perdoe se estou sendo dura: Muita gente não ouviu porque não quis ouvir. Todos estão surdos. E você é uma dessas pessoas. Não se pode torcer por nada que já nasceu em uma estrutura de ódio. Tudo vai mal. Tudo!  Pense um pouco mais e reflita. Lady Laura, Titia Amélia e tantas outras como as suas fãs, não nasceram de uma fraquejada. Como se pode achar legítimo um governo baseado na farsa, na apologia à tortura, no preconceito racial, na desvalorização da ciência, da ecologia e da educação? Roberto, é preciso acordar e responder: O que será o futuro que hoje se faz. A natureza as crianças e os animais?

Nesses dias de quarentena aproveitei para revisitar alguns vinis e me deparei com um monte de coisas suas. Sabe, Roberto, não dá pra relativizar tanta estupidez. Como também não se pode aceitar a intolerância e achar normal que pessoas da sua idade morram em uma roleta russa fascista. O novo ministro da saúde do governo Bolsonaro, Nelson Teich, é “bem intencionado”. Atente, Roberto, o quanto irracional é torcer por essa gente. Veja a argumentação insana do médico oncologista que chefia o ministério: E, se tem uma outra coisa que é fundamental, é que como você tem dinheiro limitado, você vai ter que fazer escolhas. Então você vai ter que definir onde você vai investir. Então, sei lá, eu tenho uma pessoa que é uma pessoa mais idosa, que tem uma doença crônica, avançada, e ela teve uma complicação. Para ela melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que eu vou gastar para investir num adolescente, que tá com um problema. O mesmo dinheiro que eu vou investir lá é igual. Só que essa pessoa é um adolescente que vai ter a vida inteira pela frente, e o outro é uma pessoa idosa, que pode estar no final da vida. Qual vai ser a escolha? Então são duas coisas importantíssimas na Saúde hoje é (sic): o dinheiro é limitado e você tem de trabalhar com essa realidade. A segunda coisa: escolhas são inevitáveis. Quais vão ser as escolhas que você vai fazer, né?"

O país agoniza e isto não é numa novela com Regina Duarte. É real. São bilhões de pessoas infectadas no mundo e o seu presidente trata uma epidemia como uma "gripezinha". Sua estupidez, não lhe deixa ver. Se recomponha, por favor! “O “Deus Mercado” não pode está do seu lado. Cante: Tanta gente se esqueceu. Que a verdade não mudou.



Você precisa se olhar no espelho desde que confraternizou  com o regime militar e cumprimentou efusivamente um monstro chamado Pinochet. Nunca é tarde para se libertar. Conte ao menos até três. Se precisar conte outra vez. Mas pense outra vez. Não coloque na conta que o seu problema reside no envelhecimento. Não procede. Veja os exemplos de Gil, Caetano, Rita Lee e Fernanda Montenegro. Leia o cometário do ator Antônio Fagundes acerca do momento atual, em uma entrevista para a revista Veja: "Primeiro, acho que essas pessoas devem ser órfãs, pois ninguém pode em sã consciência não se preocupar com a morte dos pais e dos avós, certo? Outra coisa: elas marcaram a data para morrer? Porque, depois dos 40 anos de idade, já estamos todos mais perto da velhice do que da juventude. É horrível quem não valoriza idosos. Todo esse cenário me faz lembrar da frase de Edmund Burke: “Quem não conhece sua história, está condenado a repeti-la”. Esse mesmo tipo de preconceito já foi visto na história, com a eugenia. Na Alemanha, o nazismo eliminava idosos, uma história que não pode se repetir. Eliminava-se também os que pensavam diferente, os deficientes. O mundo está passando por isso de novo. Milhões de pessoas morreram pela irracionalidade. E parece que não aprendemos nada com isso."



Desejo sinceramente, Roberto, que além do horizonte exista uma lugar bonito pra se viver em paz. Parabéns, pelos 79 anos. E se puder, assista um trecho da apresentação de Paul MacCartney no One World: Together at Home. O ex-Beatle jamais esquece das suas origens.  Durante a live lembrou da sua mãe, Mary, enfermeira e ex-parteira, e dedicou uma  nova versão da clássica Lady Madonna a todos os profissionais que enfrentam resignados o resultado de políticas neoliberais que não priorizam a saúde pública. Sim, Roberto, eu sei que tanta gente esqueceu que o amor só traz o bem, que a covardia é surda e só ouve o que convém.

Ah, não poderia terminar este texto sem o meu "presente". Na voz do seu amigo, Eramos Carlos, recorde a beleza da canção que vocês escreveram. Escute!

Eu cheguei de muito longe
E a viagem foi tão longa
E na minha caminhada
Obstáculos na estrada,
mas enfim aqui estou
Mas estou envergonhado
Com as coisas que eu vi
Mas não vou ficar calado
No conforto acomodado como tantos por aí
É preciso dar um jeito, meu amigo
É preciso dar um jeito, meu amigo
Descansar não adianta
Quando a gente se levanta quanta coisa aconteceu
As crianças são levadas pela mão de gente grande
Quem me trouxe até agora
Me deixou e foi embora como tantos por aí
É preciso dar um jeito, meu amigo
É preciso dar um jeito, meu amigo
Descansar não adianta
Quando a gente se levanta quanta coisa aconteceu
É preciso dar um jeito, meu amigo
É preciso sim
É preciso
É preciso dar um jeito




Links das matérias citadas: VejaFolha, ISTOÉ e Coluna do Reinaldo Azevedo

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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.