por Quiercles Santana__
Não
lembro bem que ano era aquele, mas não faz tanto tempo assim,
trabalhávamos Eron Villar e eu para a campanha de Pedro Eugênio
(PT), que concorria à prefeitura de Ipojuca, na época. Nós dois
éramos os responsáveis pela campanha de rádio do pretendente ao
cargo. Ganhavámos o nosso dinheirinho, mas fazíamos sobretudo por
acreditar no candidato. Nunca fui de balançar bandeira de seu
ninguém em que eu não botasse minimamente fé (nem mesmo quando,
anos depois, por telefone, fui ameaçado por não comparecer na
entrega de “santinhos” na campanha de rua do atual prefeito de
Recife, em 2016, quando eu era gerente do Teatro de Santa Isabel).
Custa-me a consciência e é com ela que tenho que deitar todas as
noites.
Quanto
a Ipojuca, batalhamos muito, toda a equipe, para fazer a população
avaliar que tipo de prefeito seria o melhor para a cidade. Ipojuca
tem 72 engenhos de cana-de-açúcar e é o
terceiro maior Produto Interno Bruto (PIB) de Pernambuco, graças ao
turismo, com suas praias conhecidas por meio mundo (Porto de Galinhas, Cupe, Muro Alto, Maracaípe
e Serrambi) e a
um dos principais portos públicos do Nordeste,
dos mais avançado do país em matéria de tecnologia. Muito
dinheiro parece circular nas esferas mais altas, mas o IDH é uma
vergonha de dar nojo.
O
fato é que toda segunda-feira pela manhã bem cedo, Pedro Eugênio
vinha ao estúdio e passava o expediente gravando programas para a
semana inteira. Caso fosse necessário, vinha para uma fala
extraordinária. Nós deixávamos tudo pronto e ficávamos de
prontidão, caso acontecesse alguma eventualidade.
Pedro
tinha boa retórica, propósitos nobres, um planejamento bem
estruturado, com o intuito de tirar a população das condições
precárias de miserabilidade em que se encontrava há séculos. Não
seria um milagre, claro, haveria muita luta pela frente, mas estava
disposto. E nós também.
Contudo,
à medida que o tempo avançava as notícias não eram nada boas.
Começaram a ficar frequentes episódios em que a comitiva do nosso
candidato não conseguia entrar com os carros em determinadas ruas e
localidades por conta de pilhas e pilhas de telhas, tijolos e areia,
atravancando o caminho, material de construção oferecido por alguns
de nossos opositores (senão por todos). Era uma coisa explícita,
corrupção passiva e ativa, descarada.
A
coisa chegou num ponto em que certa manhã Pedro entrou completamente
abatido no estúdio e, sem ânimo, se sentou à mesa, respirou
profundo, passou a mão no rosto, pediu para ficar um tempo sozinho.
Do outro lado da janela de vidro, ficamos em silêncio, olhando-o
reflexivo, silente, pesado. Era nítido que as coisas não iam bem. O
homem estava numa tempestade, víamos o turbilhão no seu semblante
abatido, bem diferente do início da campanha.
Depois
de um momento, fez sinal de que estava pronto, pegou o microfone e
registramos aquela que viria a ser a última gravação do Sr.
Eugênio. Ele pediu de forma explícita à população que não
vendesse o voto por cimento, tijolo e areia. Cimento, tijolo e areia
ia trazer melhorias individuais, mas não coletivas. A merda ia
continuar grassando pra todo mundo. Para todo mundo não. Para os
debaixo somente. Foi um discurso emocionado, sincero, contundente,
sem rodeios, tapa na cara. Torcemos para que aquelas palavras
pudessem tocar, mesmo de última hora, a consciência das pessoas.
Mas surtiu pouco efeito. Perdemos. A equipe ficou destroçada. E
voltamos cabisbaixos para Recife.
Um
ano ou dois depois, pela TV, soube do falecimento de Pedro, acho que
motivado por uma cardiopatia, não tenho certeza, que o levou desta
para melhor. Uma fatalidade lastimável. Uma pena real. Se foi.
Mas
por que falo isso hoje aqui?
Isso
tudo me veio à cabeça logo pela manhã, porque acordei me sentindo
pressionado pelas forças dos acontecimentos. O Brasil não vai bem,
obrigado! E isso graças às classes dirigentes que vão continuar
apostando como sempre no binômio “Casa Grande & Senzala”.
E
daí?
Daí
que apesar da “gripezinha”, a nossa gente segue firme, mas aos
pedaços, dilacerada por esse vírus que veio para botar alguns
pontos nos ís e trazer às cabeças alguns esclarecimentos; isso
para quem estiver aberto a aprender alguma lição, isso para quem
for humilde o suficiente para entender o que está acontecendo,
procurar ao menos entender o quanto de má gestão política do
passado e do presente estamos sofrendo agora.
A
crise sanitária é fruto de nossa completa ignorância política, de
nossa falta de articulação, de nossa compreensão tosca de
sociedade, em que vale primeiro o meu pirão se houver pouca farinha
(e quase sempre há pouca ou nenhuma farinha para quem mora na base
da pirâmide) e isso é a força que excita o Poder Soberano.
Em
13 anos da Esquerda no poder os pobres tiveram acesso ao Magazine
Luiza, às bolsas família, às Universidades, mas pouca coisa em
termos de formação política para o que se costuma chamar de “a
base”. À ralé foi dado o alimento de cada dia (não nego a
importância disso), mas nem só de comida vivem as pessoas. Pão e
circo, telha e areia, não deveriam nos botar de quatro, diante de
quem quer que seja. O povo continua politicamente tapado (não todo o
povo, é evidente, mas boa parte), sem discernir alho de bugalho, se
expondo ao risco do vírus, atrás dos malditos R$600, com
dificuldades tremendas de conseguir ter acesso ao benefício.
Mas
ali aonde o poder público não entrou, ou entrou só de maneira
tímida, trazendo feira e TV de LED, a Igreja entrou com força.
Deus não morreu, a despeito do que disse Nietzsche. É ainda muito
poderoso e fé é algo muito potente, que pode fazer das pessoas
ovelhas dóceis demais. O problema é o Pastor e os interesses por
debaixo da “Palavra da Salvação”, por que já está longe o
tempo de “dai a César o que é de Cesár”.
Outro
dia, no Largo de Santa Cruz, uma equipe pentecostal veio oferecer
serviços de corte de cabelo, comida e Deus. E por essa tríade (na
falta de cimento, tijolo e areia) votos devem correr nas eleições
próximas para as urnas das igrejas, coisa que de uma forma ou de
outra acabou elegendo, nas últimas eleições, gente feito a ameba
que hoje temos na Presidência da República.
O
futuro não é promissor para a gente. Quem éramos nós na fita
cinco anos atrás? A polícia vai continuar tosca, a Saúde vai
permanecer indecente, os Três Poderes serão a merda de sempre e
nós, nós pagaremos a conta, depois de enterrarmos os nossos mortos,
isso se não formos nós a irmos juntos para vala, o único bem comum
a que parece termos algum direito neste país, em que não vejo nada
de Brasil acima de tudo e nenhum Deus acima de todos. Quando
os filhos de Deus elegem o filho do Demônio, estamos mesmo num beco
sem saída.
Mas
e daí?
Recife,
28 de abril de 2020.
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Quiercles
Santana é arte-educador, ator,
encenador, dramaturgo e professor de teatro, formado em Educação
Artística com Habilitação em Artes Cênicas pela UFPE Fez parte do
corpo docente de diversos projetos sociais, a exemplo do
Projeto Santo Amaro (da
Escola Superior de Educação Física/ESEF-UPE),
do Projeto ReVersus
(da UFPE), do
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
(PETI/Projeto Teatro
do Oprimido) e do Programa
de Animação Cultural (este
último em parceria com o ex-Padre Reginaldo Veloso
e Fátima Pontes, na
Secretaria de Educação da Prefeitura da Cidade do Recife,
durante a gestão de João Paulo). Foi diretor artístico da
Trupe Circos, da Escola
Pernambucana de Circo (Circo
Social). Trabalhou seis anos na Diretoria de Políticas Culturais da
Fundarpe. Dirigiu
diversos espetáculos entre eles:
Olhos de Café Quente,
do Nútero de Criação
Artística; Alguém Pra
Fugir Comigo, do
Resta 1 Coletivo de Teatro; e
Espera o Outono,
Alice,
do Amaré Grupo de Teatro;
Berço Esplêndido,
do Grupo Panorama de Teatro;
e Balbúrdia,
da turma profissionalizante da Companhia Fiandeiros de
Teatro. Foi gerente do Teatro
de Santa Isabel de 2015 a 2017.
Estreou como documentarista em 2013, no filme “Contos
Ruas Casa & Quintais”,
filme que registra fragmentos de memórias de pessoas idosas,
residentes em Recife. É analista de projetos culturais.
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