por Quiercles Santana__
Lembro
somente que era noite e que minha paciência estava já no limite
antes mesmo dessa história começar. Foi no Córrego do Jenipapo.
1990 ou 91, não tenho certeza. Por volta das 21h comecei a escutar
os gritos dele… lancinantes. Às 22h persistia. Às 23h, o resto do
mundo em silêncio, ele continuava.
“MÃÃEEE!!!!
Ó, MÃÃÃEEEE!!! EU QUERO MINHA MÃÃÃÃEEEE, MEU DEUS! Ó, MEU
DEUS! MANHÊÊÊÊ!”.
Não
berrava a todo momento. Fazia isso umas quatro cinco vezes e depois
se calava. Dez minutos depois retornava com força. Eu estava no
quarto agarrado a um livro, sem conseguir levar a leitura adiante por
causa dos queixumes dele. Puta que o pariu! Fui ficando impaciente.
Resolvi
largar tudo e ir procurar de onde os gritos vinham. Ia pedir que ele
calasse a boca. Tinha que ser rápido ao sair para não dar tempo de
minha mãe perceber meu movimento. Se tivesse visto, não teria me
deixado ir. Fui.
Ás
vezes me meto em coisas que não valem à pena. Tenho um talento nato
para isso. Desci a rua até chegar na esquina da casa de Cremilda,
nos pés da escadaria que levava à casa de Lourdes, mãe de Léo.
Era do ponto alto que vinham os gritos, de algum lugar lá em cima.
Estava escuro (e muito!) do meio da escadaria para cima, postes
apagados… E, para ajudar, o cara estava na parte mais alta e
sombria. Fiquei pensando se devia ir, fiquei pensando se ir não me
impediria de voltar. Voltar inteiro ao menos. Mas agora já era.
Desandei a subir.
Sabe
aquelas ocasiões que se misturam em você a raiva e o medo? Enquanto
subia os degraus um a um ia sacando a péssima ideia da empreitada.
“Que merda!”, pensava. Mas por outro lado não dava para ficar
ignorando três horas de gritos de um cara querendo a mãe, a uma
hora daquelas. Eu ia arranjar uma mãe para ele, fosse como fosse.
A
certa altura comecei a divisar uma figura debaixo de um pé de jaca,
em frente a casa de Têta. Era ele, sentado num degrau, resmungando
baixinho, choroso, embriagado. Eu parei a uns metros abaixo dele,
suando frio. Ele cravou em mim os olhos.
“Boa
noite!”, eu disse.
“Eu
quero a minha mãe!”
“Talvez
possa ajudar em alguma coisa”
“Não!
EU QUERO A MINHA MÃE, PORRRAAAA!!!”
“Escuta
aqui, irmão, eu não sou a sua mãe. Não sei quem é ela e nem onde
está! Também não procurar que não é de minha conta. Mas a MINHA
mãe está lá embaixo, doente, querendo dormir. E não tem como
dormir com essa sua boca grande.”
Calou-se
um instante. Ficou me olhando
“Desculpa,
velho!”, falou. “Foi mal!”
Vinda
de dentro da casa apareceu uma mulher na porta, jovem, talvez a irmã
dele, talvez a esposa. Perguntou se podia ajudá-la a levá-lo para
dentro. “Ele não morde”, me disse. “Pois tá certo”, pensei
comigo. E me aproximei.
Ele
era um cara enorme, musculosos, socado, mas com esforço (e nenhuma
resistência da parte dele), conseguimos levá-lo para o banheiro.
Tiramos a roupa dele na sala e o colocamos nu, sentado numa cadeira,
debaixo da água fria. Começou a soluçar alto e a chorar. Na minha
imaginação vejo a mulher chorando junto, o amparando, segurando a
cabeça do marido ou irmão, dando beijo em sua testa, dizendo um
“tudo vai passar”. Ele foi se acalmando aos poucos, respirando
fundo. Lembro do trabalho que deu levá-lo até a cama de casal onde
despencou desacordado e lá ficou, imóvel.
Já
passava da meia noite. Ela agradeceu. Eu fui embora. Cabeça doendo e
encharcado. Em casa tomei também um banho, um AS Infantil e fui me
deitar. Não conseguia ler mais nada. Mas pelo menos o silêncio
tinha voltado a reinar.
Dois
anos depois, ele foi assassinado, no Alto da Telha, onde morava a sua
mãe, noutra madrugada. Policiais civis mascarados ou alguma
quadrilha a quem ele devia alguma coisa. Um tiro de 38, na nuca, no
quintal da casa, sob os olhos da velhinha, que tocou o resto da vida
a base de mais remédios.
Logo
depois do disparo, dizem, enquanto os algozes desciam a ladeira
escura, ela é que teria gritado desembestada, a plenos pulmões:
“NÃÃÃÃOOOO!!!!
MEU FILHO, NÃO! MEU DEUS! MEU FILHO NÃÃÃÃOOOO!!!!”
Mas
isso eu não vi. Não tenho como dizer. Não estava lá.
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Quiercles
Santana é arte-educador, ator, encenador, dramaturgo e professor
de teatro, formado em Educação Artística com Habilitação em
Artes Cênicas pela UFPE Fez parte do corpo docente de diversos
projetos sociais, a exemplo do Projeto Santo Amaro (da Escola
Superior de Educação Física/ESEF-UPE), do Projeto ReVersus (da
UFPE), do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
(PETI/Projeto Teatro do Oprimido) e do Programa de Animação
Cultural (este último em parceria com o ex-Padre Reginaldo Veloso e
Fátima Pontes, na Secretaria de Educação da Prefeitura da Cidade
do Recife, durante a gestão de João Paulo). Foi diretor artístico
da Trupe Circos, da Escola Pernambucana de Circo (Circo Social).
Trabalhou seis anos na Diretoria de Políticas Culturais da Fundarpe.
Dirigiu diversos espetáculos entre eles: Olhos de Café Quente, do
Nútero de Criação Artística; Alguém Pra Fugir Comigo, do Resta 1
Coletivo de Teatro; e Espera o Outono, Alice, do Amaré Grupo de
Teatro; Berço Esplêndido, do Grupo Panorama de Teatro; e Balbúrdia,
da turma profissionalizante da Companhia Fiandeiros de Teatro. Foi
gerente do Teatro de Santa Isabel de 2015 a 2017. Estreou como
documentarista em 2013, no filme “Contos Ruas Casa & Quintais”,
filme que registra fragmentos de memórias de pessoas idosas,
residentes em Recife. É analista de projetos culturais.