por Adriano B. Espíndola Santos__
Imagens e personagens de Mrs. Dalloway
São
várias as imagens e os fios de interpretações possíveis em Mrs.
Dalloway, de Virginia Woolf. Mas digo que fui fisgado por algumas
nuances que me fizeram parar a leitura para revisitar percepções do
inconsciente, talvez; para refletir sobre o modus operandi do
pós-guerra desolador – e as graves consequências disso -,
sobretudo de uma sociedade plasmada no conservadorismo. Ou seja, como
sempre busco fazer, remanejo na mente os caminhos sociais, culturais
e etnográficos, que o livro demanda – este em 1925. Não se lê
exclusivamente agora; mas, sim, com um olhar sensível e histórico,
cruzando o passado e o presente.
Primeiramente,
destaco a maneira que Virginia Woolf abordou o papel da mulher numa
sociedade arraigada por questões morais e tradicionais, num panorama
pomposo e, diria até, fantasioso quanto à divindade da monarquia;
que as pessoas, portanto, estariam autorizadas, mais que isso,
ordenadas a dar a vida em prol da grande nação – dar no sentido
de dádiva mesmo; entregar-se, descomprometido. E aí se pode
perceber as diferentes e definidas funções atribuídas aos homens e
às mulheres, como algo absolutamente natural, segundo Mrs. Dalloway
– enquanto, veladamente, Virginia Woolf disseca o machismo e a
misoginia na sociedade burguesa.
Vê-se,
com uma delicadeza extrema, a fluidez do monólogo interior, que é
atravessada pelo fluxo de consciência – uma característica ímpar
de narrar; fazendo aqui menção, também, à obra de James Joyce,
por exemplo.
Nessa
guisa, também, vale mencionar a técnica do discurso direto livre, a
qual possibilidade a plasticidade indispensável à autora para
passear pelas figuras de narrador e de personagem. Virginia brinca,
sutil, com os movimentos e as expressões na narrativa. É fabuloso
experimentar a cadência ou a quebra de ritmo na linguagem,
projetando-se em múltiplas perspectivas; levando a uma dinâmica
instigante.
Com
personagens tão vivos quanto fundamentais, opera-se o entrelaçar
constante de memórias pungentes, imprimindo indelével animus
ao romance. Septimus é um ícone da trama, pois que passa por
severa perturbação metal em decorrência da guerra e sofre o revés
de uma sociedade despreparada para atendê-lo ou entendê-lo, sendo
relegado à tragédia. Virginia, transmutada em Septimus,
revela a sua dor e a inabilidade dos tratamentos conflitantes à
época – creio ser um sofrimento a mais para Virginia, a falta de
consenso médico e o embate de métodos psiquiátricos para atender
episódios como o seu.
Peter
Walsh está em boa parte da trama; é o elemento questionador. Passa
longos momentos sendo confrontado por pensamentos – seus e dos
demais - quanto à sua vida instável; e, concomitante, apesar da
paixão encoberta ou rejeitada por conveniência, tenta se convencer
de que justamente as frivolidades de Mrs. Dalloway lhe
desestabilizam, porque não coaduna. Ou seja, acaba, de certa
maneira, a se acomodar ou a se conformar com o estado das coisas.
Aparenta não ter mais forças para lutar por seus ideais. Peter,
assim, é visto como galante mutável às circunstâncias, sem
expressividade, por ser afeito a desconfiadas trapalhadas.
Doris
Kilman é o necessário contraponto. Tutora de Elizabeth, filha de
Mrs. Dalloway, muito estudada, represa seus conflitos internos, como
a pobreza, a injustiça – desconsiderada por se intelecto -, e a
religião. Doris Kilman é a mulher que se insere na modernidade, mas
presa às teias do conservadorismo; à culpa e ao medo. Opõe-se ao
modo de viva da sociedade frívola; contudo, para sobreviver, tem de
se submeter à desagradável superficialidade de Mrs. Dalloway, que,
por seu turno, expressa a aporofobia e a xenofobia.
Mrs.
Dalloway marca pela inquietude e pela complexidade intrínsecas; e
pelo arranjo das imagens, que vão se conformando para deflagrar a
até então latente injustiça social. Em suma e essência, é
espelho das incongruências humanas, que não discrepam muito de
nossos dias.
_______________________________________________________
Adriano
B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor dos
livros Flor no caos, 2018 (Desconcertos Editora), e Contículos de
dores refratárias, 2020 (Editora Penalux). Colabora mensalmente com
a Revista Samizdat. Tem textos publicados nas Revistas Acrobata,
Berro, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura &
Fechadura, Mallarmargens, Mbenga, Mirada, Pixé, Ruído Manifesto,
São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em
Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o
coração inquieto.