Planta baixa, de Cleyton Cabral


por João Gomes__



NÃO SÓ DE SONHO E AFETO SE FAZ UMA PLANTA BAIXA


No tempo veloz que vivemos, textos classificados como narrativas breves têm um lugar especial por apreciadores de gêneros como o conto e a crônica. Uma narrativa breve pode ser um microconto, com menos de 140 caracteres, ou um miniconto. Não há perda do valor literário, dada a concisão e as possibilidades infinitas de interpretações em textos diretos, afiados e disparados como balas na realidade crua que vivemos. Às vezes são apenas anotações esparsas que ganham títulos inteligentes, outras tantas são frases já tão conhecidas que, por ser um microconto com autoria, sabemos que foi lançado em alguma obra antes mesmo de estar num muro. São breves, mas são narrativas que pulsam em forma de denúncia ou de constatação.
Um tanto assim é feito o Planta baixa, do escritor pernambucano Cleyton Cabral, publicado pela editora Patuá em 2019. Narrativas breves, organizadas de acordo com a planta de um apartamento, num modo contemporâneo e inteligente de pensar as relações humanas. Foi a forma que o autor encontrou de mostrar sua versatilidade com narrativas de temáticas tão variadas num único livro, mas sem perder a unidade da obra. Não como justificativa, em algum momento, na fala de um de seus personagens lemos: “A vida é igual aos filmes água com açúcar, romance americano, igualzinho.” Porque é da fantasia e do resíduo do que pode ter sido a infância que partem as narrativas de Planta baixa.
Além de escritor, Cleyton é também publicitário, ator e dramaturgo de peças teatrais premiadas. Com um terreno vasto e consciente por onde trilha, é com afeto e desenvoltura que sua literatura acontece. São textos com vida própria, que podem ser contados ou apenas falados em saraus justamente pelo fato de possuírem vida em suas linhas. Algumas vezes aparentemente frágeis, talvez pela decisão de querer falar da infância, do amor não correspondido, não deixa de ter a verdade dentro do que deseja ser real. É uma escrita crucialmente urgente, como foi colocada na apresentação pelo jornalista Ney Anderson, mas é também atenta ao que não queremos às vezes falar: o sonho, o amor, a pedofilia e etc.
No conto Aula de oratória: Quero falar do amor. Quero falar do amor. É preciso repetir para você saber a intensidade do meu querer.” E é de quereres que o personagem do primeiro conto do livro, Garrincha sem chuteiras, rompe o clichê da masculinidade para dizer a sua mãe que, mesmo com treinos diários para fazer um golaço, o que queria fazer de atividade na escola era o balé. Para algumas pessoas, pode ser como um fim trágico ou, em se tratando da obra, um começo nada original, mas é no desenrolar dessa dança que descobrimos uma infinitude de cenas ambientadas em finais nem sempre felizes, alguns com mistérios, suspenses, mais uma vez muito afeto e loucuras diretamente das cabeças de seus tantos personagens. “Eu vou escrever neste caderno todo pensamento que cair na minha cachola. Quem fala cachola é meu avô. Um dia eu ouvi ele dizendo para a minha avó que meu tio não tem nada na cachola. Fui pesquisar na internet. Cachola é o mesmo que cabeça.”, nos conta a personagem “minifilósofa” de oito anos do conto Kyro.
Mesmo classificado como contos brasileiros, o autor mostra o quanto será poético o desenho do condomínio-mundo-como-um-todo logo no início com uma epígrafe de autoria própria: “Planta baixa, / Nossos corpos que nunca se viram. / Planta alta, / Meu pensamento em ti. / A folha em branco, a régua T. / Eu escolhendo as melhores palavras, / Tu calculando os melhores espaços e invadindo o meu. / Vãos / Mãos / Nãos / Não são.” Talvez a escolha de uma epígrafe certeira se dê pelo fato de também o autor ter milhares de possibilidades quando um de seus personagens termina “dormindo personagem” ao passar a tarde de um sábado organizando os livros na estante: “Ana Cristina César e Alejandra Pizarnik com a cobertura inteira só para elas. A taurina Hilda Hilst ganhou localização privilegiada, como em um anúncio de empreendimento: de frente para o mar.”
Ao contrário do que possa parecer, Cleyton Cabral não apenas usou como pano de fundo o sonho e o afeto, em algumas narrativas sentimos a tristeza emanar das páginas, como em Carta para Papai Noel: “Eu sei que você existe. Eu já vi e tudo. Só não acredito que você viaja de renas. Aí já é demais pro meu coração.” Como que ilustrando a dor do momento que estamos passando no momento atual pela crise do novo coronavírus, Quitéria, recifense e autora da carta, termina: “Você já trouxe brinquedos, comida pra gente. E este ano como vai ser? Se for desse jeito, vou ter que me contentar em levar os meninos pra olhar sua foto colada nas lojas do shopping.” Aí percebemos que a carta vem de uma mulher humilde que sonha junto com seus filhos uma fantasia capitalista que lhe possibilita alegrias na difícil sobrevivência.
O primeiro livro de Cleyton se chama Tempo nublado no céu da boca, feito também de narrativas breves como numa coletânea de textos publicados nas redes sociais. Mas neste Planta baixa, que não sabendo o verdadeiro significado do título, pode ser também comparado às narrativas da seção BANHEIRO: o erotismo, com apenas três narrativas. Porque não é dessa temática talvez mais vendável e secreta que se debruça o autor, mas sim das relações humanas envolvendo desejo, pedofilia, relação de poder, e sobretudo afeto. Porque o mundo, Cleyton, é mesmo cão e você tem razão quando diz no conto Percurso: “Tantas demonstrações de afetos e promessas para descarrilar assim nesse desentendimento.” Ter lido Planta baixa me deixou mais atento em como o mundo acontece, porque sei que “esse olfato apurado é capaz de me tragar por inteiro” e nem só de sonho e afeto se faz uma planta baixa.
Fotografia: Alex Ribeiro

Cleyton Cabral é escritor, dramaturgo, ator e publicitário. Tem seus textos publicados em várias coletâneas. Publicou os livros Tempo nublado no céu da boca (contos), Mosaico (contos), Escrever ficção não é bicho-papão (técnicas narrativas) e O menino da gaiola (teatro infantojuvenil). Em 2016, foi o vencedor na categoria dramaturgia (teatro adulto), no I Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia, com o texto Talvez sim, talvez não. Em 2018, ficou em segundo lugar na mesma premiação com a obra Desculpe o atraso, eu não queria vir.  
                             

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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.