Artistas, precisamos dar melhor forma ao mal que nos aflige | Quiercles Santana


por Quiercles Santana__




Em 2007 fiz a minha primeira viagem internacional: Porto (Portugal), para a Mostra Internacional, em Ermesinde, comandada por Júnior Sampaio (Entretanto Teatro).
O Palhaço Jurema e os Peixinhos Dourados dava um trabalho dos diabos. Eu ajudava a montar o cenário, operava a sonoplastia e fazia assistência de direção para Carlos Carvalho, o chefe da banda. Gilberto Brito e Andrezza Alves no elenco, Sávio Uchôa na iluminação. Direção de arte de Marcondes Lima. Trilha sonora de Fernando Lobo. Execução de cenário de George Cabral. 
Não sei se sabem, mas o espetáculo era inspirado no conto O Palhaço, de Hermilo Borba Filho, cuja narrativa versava sobre as desventuras de Jurema, que vivia num trailer abandonado às margens do Rio Una; e o crescente processo de enlouquecimento que o levou a estuprar uma criança e a cometer suicídio no meio da função, num circo de quinta categoria, em Palmares.
Do começo até mais ou menos o meio do espetáculo tínhamos um palhaço decadente, nostálgico, mas sedutor em sua rabugice, que nos arrancava altas risadas com os seus sonhos de virar astro de cinema. A plateia ia se afeiçoando a ele, aos poucos, percebendo que a sua insanidade era grave, mas não excedia os limites de seus devaneios.
Porém, a dado momento, quando a paixão repentina pela menina irrompia da escuridão, começávamos a temer pelo que estava por vir. Era um assunto delicado, tratado com o devido esmero, para que pudéssemos nos aproximar primeiro daquela criatura e depois descer com ela ao inferno de sua alma, para daí sim construir uma crítica a partir de dentro. Foi um processo longo, difícil, mas que me ensinou muita coisa sobre ser artista e não temer tabus.
Um ou dos anos mais tarde, a convite do SESC, nos apresentamos no Teatro Capiba (em Recife/PE) e o que vou contar agora tem a ver com essa apresentação específica, uma noite em que a programação incluía debates com o público no fim da récita.
Enquanto operava o som, durante a atuação, da cabine técnica (que fica no alto, atrás da plateia) detectei uma pessoa do arcebispado da cidade, folheando uma revista ou livro, sempre que a luz vinda do espetáculo era suficiente para isso. Essa atitude me chamou a atenção e quando eu podia, quando havia uma brecha, punha os olhos no exótico rapaz.
A gente vai ao teatro, penso eu, para assistir o que os artistas prepararam para nós, não para fazer leituras de revistas como se estivéssemos no saguão de um aeroporto (mas cada um é cada um e, de todo jeito, antes uma revista que um smartphone, cuja luz atrapalha demais a recepção das pessoas que estão ao lado).
Na hora do debate, esse ávido leitor se ergueu enfurecido para falar o quanto nós tínhamos colocado a profissão de palhaço numa situação muito difícil; disse que era criminosa a nossa abordagem da categoria, que os palhaços não são pedófilos, que o nosso espetáculo era muito ofensivo; e que não entendia como artistas de teatro podiam ter como foco tal coisa.
Lembro de que pedi a palavra para contra-argumentar, mas por sorte uma mulher, do alto de sua sapiência, muito elegante, mas sem papas na língua, falou antes de mim e disse tudo o que eu não conseguiria jamais dizer melhor. Vou tentar resumir aqui o que me lembro.
Falou que tinha gostado muito, que era uma obra interessante exato por mostrar o lado sombrio do ser humano, que tanto pode ser bom quanto mau; tanto angélico quanto demoníaco; tanto acolhedor quanto deplorável; e que a loucura pode nos colher a qualquer instante na nossa miserável trajetória sobre a terra. Falou também o quanto estava feliz por ter visto um elenco afiado; e que parte importante da potência estética do nosso trabalho perturbador estava no COMO nós tínhamos lidado com o assunto.
Por fim, ainda disse o que me motivou hoje a escrever isso tudo: que longe do que era defendido pelo bibliófilo, “O Palhaço Jurema…” não tratava de maneira nenhuma da profissão do palhaço. A narrativa era sobre AQUELE ser específico, sobre AQUELA história desgraçada e singular, sobre a particularidade DAQUELE caso. Não estávamos querendo (longe de nós) representar mais ninguém, a não ser JUREMA, a personagem, inteiro, único, excepcional. Não tínhamos, portanto, feito uma alegoria, não estávamos falando em nome de um coletivo, de uma categoria profissional; apenas nos limitamos corajosamente a colocar na arena um assunto espinhoso e que precisava ser olhado de frente, sem melindres, pela sociedade.
Fiquei com a alma lavada. Saí do teatro com asas.
Uma questão que me é cara é justamente ser livre para tratar de qualquer assunto sem ter medo de mexer em feridas. Não fosse isso, se estivesse à procura apenas dos aplausos dos meus pares, de uma legião de adeptos, de uma congregação religiosa, para abraços e fotografias, é provável que estivesse ainda fazendo as merdas que fiz quando comecei essa carreira.
Não poucas vezes vou assistir o trabalho de meus companheiros e sei o quanto da dor deles está presente nos espetáculos que levam ao palco. Respeito a dor. Respeito as obras. Algumas de suas feridas são minhas também. Mas me entristeço pelo resultado final, por que parece que há mais vontade de gritar que de cuidar de uma obra, cujo zelo com a forma daria ao grito atravessamentos mais potentes. Assuntos importantes têm que ganhar fisionomias igualmente arrebatadoras. Descuidar da forma é ferrar o conteúdo. Uma e outra coisa são a mesma coisa. E essa é uma lição que os artistas ativistas não devem perder de vista (não só para fazer rima).
Claro que eu não sou ninguém. Minha palavra não tem força de lei. Está no arbítrio de cada um procurar ou não isso que eu busco às raias da loucura em cada novo chamado para a cena. Quando aceito fazer os meus trabalhos tenho consciência de quão limitados eles podem ser e sei do esforço que fazemos (elenco, técnicos e eu) para lhe dar respiração e autonomia. É um exercício lento e pesado. Muita leitura, escuta, escrita, sobre tudo, sem freios. Nada passa em brancas nuvens, coisas amargas nos vêm à boca, os pesadelos rodam os nossos quartos e nada disso, absolutamente nada garante que o resultado final seja bom. É um risco. Apostamos nele. Muitas vezes perdemos.
Mas não percamos de vista a noção de que a incompetência está mais em nós que no espetáculo em si. Ele é puro reflexo de nossa ignorância acerca de muitas coisas, inclusive as ligadas ao fazer, ao transformar ideias em imagens, palavras em ação, prosa e poesia em música. E temos também consciência de que não ocupamos a cena para representar seu ninguém, não falamos em nome de nenhuma confraria, a não ser em nome de nós mesmos, os que estão imbricados na feitura.
Claro que podem discordar de mim. Somos livres para isso. Isso aqui é uma democracia ainda, meio cadavérica, mas ainda uma democracia. Mas a plateia (não eu somente) agradece se ao invés de apenas dar gritos lancinantes, os artivistas atentem a fazer com que a dor atravesse as fronteiras de suas epidermes para atingir em cheio a sensibilidade do público, que anda ávido disso, de experiências estéticas relevantes, de uma cena poderosa, anarquista, sensível, tocante e poética… talvez hoje em dia, neste Brasil de Bolsonaro, mais que nunca.

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Quiercles Santana é arte-educador, ator, encenador, dramaturgo e professor de teatro, formado em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas pela UFPE Fez parte do corpo docente de diversos projetos sociais, a exemplo do Projeto Santo Amaro (da Escola Superior de Educação Física/ESEF-UPE), do Projeto ReVersus (da UFPE), do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI/Projeto Teatro do Oprimido) e do Programa de Animação Cultural (este último em parceria com o ex-Padre Reginaldo Veloso e Fátima Pontes, na Secretaria de Educação da Prefeitura da Cidade do Recife, durante a gestão de João Paulo). Foi diretor artístico da Trupe Circos, da Escola Pernambucana de Circo (Circo Social). Trabalhou seis anos na Diretoria de Políticas Culturais da Fundarpe. Dirigiu diversos espetáculos entre eles: Olhos de Café Quente, do Nútero de Criação Artística; Alguém Pra Fugir Comigo, do Resta 1 Coletivo de Teatro; e Espera o Outono, Alice, do Amaré Grupo de Teatro; Berço Esplêndido, do Grupo Panorama de Teatro; e Balbúrdia, da turma profissionalizante da Companhia Fiandeiros de Teatro. Foi gerente do Teatro de Santa Isabel de 2015 a 2017. Estreou como documentarista em 2013, no filme “Contos Ruas Casa & Quintais”, filme que registra fragmentos de memórias de pessoas idosas, residentes em Recife. É analista de projetos culturais.