por Adriano B. Espíndola Santos__
Sustos
graves, sequenciados, e, pronto, a carga emocional; e o medo no
tracejar da vida. Menino Fernando precisava arranjar um jeito de se
proteger da inexorável perturbação. Esse seu coraçãozinho,
próprio de um passarinho, poderia não vingar: são.
Pois
bem; vê-se uma aparente normalidade naquela casa de muros amarelos –
porta afora. Fachada linda, pintada. Portões de alumínio, concordes
à última moda. Um diplomata comodoro na garagem – o único,
talvez, a ostentar, num raio de cem quilômetros, um toca-fitas com
uma minúscula televisão. Amélia, uma amiga de mamãe, conjeturou
vaga: “Amiga, que casa linda; que família maravilhosa! Benza
Deus!”. Arrebatada pela superfície da beleza.
…
“Não
seja leviano, rapaz, não foi tão horroroso assim”. “Que
exagero!". A atroz consciência me condena. A inconsciência, o
escape, por vezes me surpreende. O receio. O medo de ser injusto. Mas
as pessoas não ouviram; não sentiram… Quem foi capaz de apartar
de mim as brigas, os gritos, os estrondos monumentais? Como, pequeno,
entender e digerir tudo; todo aquele peso adulto? Menino Fernando,
tão franzino, quieto, calado, passivo, ingênuo: menino.
Agora,
não devo me afobar tanto. É tempo de afinar as ideias; apurar
desejos, sonhos. É estratégia de remição, aproveitar a proposta
crível da transmutação, para me curar por ti, menino Fernando.
Ouça-me. Ajude-me. Somos um.
…
Quando
minha mãe arrebentou Iracilda na porrada, o meu ímpeto foi por sua
defesa. Ainda que não fosse tão afeito à sua figura grotesca,
passávamos horas e horas, eu e meu irmão, sob seus cuidados. Havia,
claro, um sentimento ínfimo (de medo): “Se ela for embora, quem
vai cuidar de mim quando mamãe não estiver?”.
Não
sobrou tempo para tomar pé da situação. A mulher saiu escorraçada.
“Quis seduzir seu pai; aliciá-lo, para se apartar de nós e
arrumar uma nova família!”, mamãe vociferava. “Aquela cachorra
quer que ele a sustente!”. Rondava a conversa que, de fato, papai
preparava as malas; que, pouco a pouco, ia deixando coisas suas em
Pacajus, para, prontamente, se mudar em definitivo. O calvário. O
martírio. O espezinhar mórbido, renitente, impassível.
O
rinoceronte irrompeu a paz, ao adentrar a casa, naquele fatídico
dia. Bêbado, reclamou a presença de Iracilda, após um fim de
semana incógnito. Não havia celular. O isolamento programado,
desleixado, completo.
A
convulsão o seguia. Mamãe aos prantos, porque o rinoceronte queria
sumir de vez. Dessa parte só tive notícia. Eu dormia, às duas da
manhã. Mas mamãe me acordou, desesperada: “Corra! Seu pai quer ir
embora! Peça, pelo amor de Deus, para ele não ir!”. Um loop
infinito: pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus.
Uma dízima periódica, que dizimou o raso nirvana que se projetava
em mim. Aos seus pés, quase em oração: “Pai, ‘pelo amor de
Deus’, não vai embora! Pai, ‘pelo amor de Deus’, não deixa a
gente aqui!”.
Chorava.
Retorcia-me. Escondia-me nos profundos da casa. Sem saber o porquê
daquilo tudo. Uma dor que ia e vinha, quando menos se esperava.
Quando menos se espera.
…
A
primeira vez. O rinoceronte não se foi, por mim. Senti-me fio frágil
de uma suposta estabilidade.
Repetidas
vezes, quando o rinoceronte se encantava com o mundo selvagem, lá ia
eu, o pequeno redentor, que o tragava do fosso da perdição,
agarrá-lo e suplicar: “Pelo amor de Deus!”. Depois (ufa!), a
religião me substituiu nessa tarefa dolorosa – para o bem ou para
o mal, abandonei a obrigação.
A
bigorna me deixava circunspecto ao lugar e, por isso, me liberava na
fantasia.
Louvo
me derramar pela arte, com a boa vontade da posteridade para me
aturar. Pois que, de outro modo, não poderia me desvencilhar dos
vestígios do mau que me sucedeu.
Como
Freud, meu refúgio e minha salvação é a literatura; a elucidação
de minhas mais intricadas proposições; a chave de acesso e de
conexão ao universo inconsciente, com dois trilhões de galáxias
inexploradas em mim.
Caro
menino Fernando. Muito caro. Caríssima a liberdade. Inalienável.
Enfim,
sigamos, não é o fim.
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Adriano
B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor dos
livros Flor no caos, 2018 (Desconcertos Editora), e Contículos de
dores refratárias, 2020 (Editora Penalux). Colabora mensalmente com
a Revista Samizdat. Tem textos publicados nas Revistas Acrobata,
Berro, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura &
Fechadura, Mallarmargens, Mbenga, Mirada, Pixé, Poesia Avulsa, Ruído
Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista.
Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir
vivo: o coração inquieto.