por Zeca Viana__
Sebald Beham, Impossível, 1549 |
Existe
um conceito fundamental que podemos encontrar em textos tão antigos
quanto a própria civilização ocidental e que continua tão atual
quanto a nossa própria insolência: hybris
(do grego ὕϐρις), ou “Das Unmögliche” (em latim
Imposibile), algo como “orgulho exagerado’, “prepotência” ou
“arrogância” — é a busca pelo “impossível” — ação
tão bem retratada na gravura de Hans Sebald Beham produzida em 1549.
Almejar o impossível faz parte dos nossos desejos subterrâneos;
revela-se em nossos arquétipos emocionais, políticos, filosóficos,
sociais e artísticos. Desde Hesíodo essa vontade já permeava a
Teogonia; obra fundante do mundo grego. A busca pelo impossível
povoa nossa imaginação em contos fantásticos – da Ilíada a Dom
Quixote – atravessando os séculos em aventuras
protagonizadas por heróis que salvam a civilização, matam o
inimigo e reestabelecem a “ordem” (do grego, κόσμος,
cosmos, organização, ordenação, etc.).
Essa
encarnação heroica dos nossos desejos tem como objetivo o combate
ao desconhecido; é uma forma de subjugar a alteridade, destruir o
reflexo dos nossos monstros internos, eliminar o não-ser e saciar a
vontade intrínseca ao colonialismo ôntico (dos corpos) e ontológico
(do Ser). É uma violência ontológica ancorada no medo do outro;
ultrapassa a reconciliação – ou a “ética da alteridade”,
como propunha Lévinas – e avança na colonização do espírito:
atire primeiro, pergunte depois! No campo político esse desejo ganha
ares fantásticos na figura mística de um “salvador da pátria”
que combate bravamente o inimigo (na maioria das vezes imaginário)
com a violência que for necessária. Afinal, fará justiça. A
política é recheada desses moinhos de vento; roteiros pré-definidos
com discursos burlescos e finais trágicos. Durante essa ascensão e
queda o herói deve eleger e derrotar o que chama de “mal” —
representado pela alteridade — buscando reequilibrar o cosmos (ou
seja, a ordem). Se esta figura for militarizada — mesmo que à moda
de um Recruta Zero! — tanto melhor: Nero, Pinochet, Stalin, Hitler,
Mussolini, Kim Jong-un, Saddam Hussein, Muammar Gaddafi, Idi Amin
Dada, Bolsonaro, Donald Trump, etc., todos fazem parte desse
picadeiro negacionista; fardas, bigodes, cabelos, medalhas,
excentricidades, símbolos, jargões... São bufões; heróis
pitorescos de cavalaria transfigurados em clowns estereotipados e
quixotescos na medida em que negam a realidade; por um lado almejando
o impossível, por outro rastejando nos limites pragmáticos da
própria ignorância.
Nesse
sentido muito se fala sobre o famoso aforisma do pátio do Templo de
Apolo em Delfos: “conhece a ti mesmo”; do coaching quântico ao
espiritualista-namastê-de-rave, essa frase é repetida — e
distorcida — diariamente. Erroneamente tem-se a ideia de que essa
máxima — replicada por Sócrates — busca o autoconhecimento
“de dentro para fora” (algo como uma expansão ilimitada da
consciência). É justamente o contrário. “Conhecer a si mesmo”
significa identificar os próprios limites e respeitá-los. É um
aviso contra o impossível. Daí surge outro aforisma “só sei que
nada sei”. É uma posição de equilíbrio e humildade frente à
ordem cósmica da qual tantos os estoicos falavam. Essa atitude
pressupõe ser-com-os-outros ou ainda ser-com-o-mundo. Portanto, é
também política. Aliás, a palavra Delfos é derivada da palavra
grega "golfinho" (δελφίνι em grego) — em inglês
dolphin — e remete ao deus Apolo que se transforma em um simples
golfinho para fundar o templo. Atualmente muitos esquecem que
igualmente está escrito em Delfos “nada em excesso”. Memento
mori, diriam os romanos.
Seja
através da insaciabilidade de Urano, seja através da fome de
Cronus, a busca pelo impossível é muito fecunda tanto na mitologia,
quanto na política pois atiça o desejo pelo poder de um “passado
heroico”. E falo aqui de um desejo aerótico, estéril, assexuado,
pois não tem como meta unir-se à alteridade, mas destruí-la. Por
isso o papel de Eros (ou do Amor) é excessivamente combatido por
políticos aeróticos. É uma política não-dialética. Para nós,
meros mortais, a hybris
— como diria Aristóteles — é traduzida como “arrogância”
ou “prepotência”; é o desequilíbrio de um líder em desfavor
do seu próprio povo. Geralmente vemos essa atitude em “ungidos”,
como faraós, imperadores, reis e ditadores. Quando essa atitude
nasce no seio democrático — através de um presidente
autodeclarado “messias” — sua política se transforma em um
“culto ao impossível”, pois busca o caos: seja institucional,
financeiro ou social. Caos (do grego Χάος, significa justamente
quebra) é o deus primordial da separação onde a renovação nasce
da destruição. A prática dessa “política do impossível”
forja o caos como o único caminho possível: é preciso aniquilar a
alteridade. Ou tudo é X ou tudo é Y; tudo que for X¹ é
prontamente tratado como Y e destruído. Essa é a cisão; o fim do
“pluralismo” aos moldes de Hannah Arendt. Por isso todo
adversário bolsonarista – necessariamente! – é acusado de
“comunista”. Essa simbologia – tanto simplória, quanto
vertiginosa – caracteriza o pensamento totalitário; sendo, por
isso mesmo, um pensamento profundamente insolente, clownesco e
debochado. Situa-se muito longe do princípio de prudência e
ceticismo que guia obras conservadoras fundamentais como “Reflexões
sobre a revolução na França”
de Edmund Burke, por exemplo.
Nesse
sentido a ação política da situação dispõe de bases
suficientemente simplórias – e revolucionárias – para
desmoralizar a racionalização institucional via um Deus ex machina:
o herói antissistema eleito para quebrar o sistema. Para tanto o
embate é fundamental: o Caos primordial, enquanto deus da ruptura
(palavra tão repetida nas últimas semanas), representa essa quimera
política. Reiniciar tudo. Resetar a sociedade. Começar do zero. É
uma marcha invertida; como se forcassem um “Big Bang ao contrário”.
Como diria o antropólogo Piero Leirner, o bolsonarismo propõe um
“reboot do sistema”. Nesse sentido, essa espécie de
meta-conservadorismo tupiniquim propõe uma involução cultural que
retrocede aos mitos de Behemoth e Leviatã – filosofema central do
olavismo – em um movimento implosivo, buscando o instante onde esse
conflito ainda não existia. Essa regressão mental corrói o próprio
senso de realidade do militante bolsonarista e o aproxima das
tendências propostas por Goebbels – ministro da propaganda
nazista e replicadas esse ano pelo Ministério da Cultura – na
busca pela revolução cultural. Na frenética
caça pelo impossível o militante se torna um espectro
fantasmagórico, teatralmente mórbido, odioso e negacionista; um
troll robotizado que zomba da morte, enxerga um “herói nacional”
no posto presidencial e defende a democracia via AI-5. É a
verdadeira fritura da estrutura lógica cognitiva do pensamento
crítico.
Chafurdando
nesse paradoxo encharcado de ódio a sociedade agoniza vestindo verde
e amarelo com um taco de beisebol na mão; o país implode
ontologicamente; marcha em direção a um “passado glorioso” que
nunca existiu, gorado e regozijado no ventre do Caos primordial. Uma
mistura de Macunaíma com a versão invertida do Superman: o Bizarro.
Afirmações como: “Não sou coveiro, taokei?!” ou “essa
pandemia simplesmente não existe”, levam o militante ao júbilo!
Aliás, na visão do bolsonarista, se Jesus voltasse agora estaria
com uma pistola 8mm na cintura, negociando cargos com o centrão e
apoiando Bolsonaro no apagão dos dados da Covid-19. Com as recentes
acusações de Olavo de Carvalho contra Bolsonaro – chamando-o de
inativo, criminoso e covarde – o ouroboros segue seu destino
inverso e come o próprio rabo rumo à aniquilação. Assim, se
alguma pessoa do seu convívio ainda acredita em um conservadorismo
aos moldes bolsonaristas faça a única pergunta possível: o que
restará para ser conservado?
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Zeca
Viana é Mestre em Sociologia (UFPE), bacharel e licenciado em
Filosofia (UFPE). Professor, pesquisador, músico, produtor e
apresentador do programa Recife Lo-Fi na Frei Caneca 101.5 FM.
Foto:
Kamila Ataíde