Nada devolverá Miguel aos braços de sua mãe | João Gomes


por João Gomes__


Acácio Júnior

Se a Corte Real tivesse responsabilidade, talvez tivesse somente um pouco de zelo e eu não estaria aqui escrevendo esse texto. O ódio da população não destila (como escreveu numa carta, tentando em vão se defender), somente suplica por justiça quando uma vida é apagada e paga por uma fiança no valor de 20 mil reais ao Poder Judiciário. Quanto ao ato, não é exatamente do que são capazes as pessoas, mas sim do que elas não são capazes quando um ser vivo necessita de sua ação para continuar a existir. Ela pode dizer que não teve a intenção, mas o desprezo pelo filho dos outros não pode negar. O elevador foi a arma, seu distanciamento foi o motor para a queda fatal.
Falo do já conhecido caso do pequeno Miguel, filho da doméstica Mirtes Renata de Souza, recifense que prestava serviço à Sarí Gaspar Corte Real e mulher do prefeito do município de Tamandaré, Sérgio Hacker. Mirtes descera para passear com a cadela dos patrões, deixando seu filho de 5 anos sob supervisão da patroa, a quem confiava e trabalhava há quatro anos. Miguel chorou como qualquer criança pela mãe, conseguindo escapar do apartamento até entrar no elevador de serviço.
Sarí, que estava com uma manicure em sua sala, em seu apartamento de luxo localizado no quinto andar de um edifício conhecido popularmente como “Torres Gêmeas” no bairro de São José, fora ainda atrás de Miguel até o elevador, mas não o leva de volta para o seu lar. Foi atrás, mas não para tirá-lo dali. Aperta o botão da cobertura do edifício, a porta fecha, Miguel bate em dois botões, o 7 e o 9, com a porta se abrindo em cada um dos andares. No 9º ele sai, vai até uma área onde ficam peças dos ar-condicionados, escala uma grade e caiu inocentemente em busca de sua mãe.
Não só até aqui, nesta parte do relato já periciado, o coração se transborda. Inicialmente, a mãe do Miguel não tinha tido conhecimento que a patroa havia apertado algum botão, o que ela disse que não havia feito e se esquecendo das imagens do circuito interno do elevador. Talvez tenha negado porque não desejaria piorar mais ainda as coisas. Prestou ainda socorro até um hospital público do Recife, mas não houve retorno ao seu descaso. No dia seguinte, compareceu ao enterro.
Quando Mirtes recebeu as imagens de seu filho no elevador, com os segundos que precederam sua queda, a doméstica telefonou para sua ex-patroa, perguntando por que deixara acontecer aquilo com seu filho. Sarí lhe disse que não havia apertado nenhum botão e que provaria isso como parte de sua inocência. Com o pagamento de sua fiança, é possível que continue respondendo por liberdade. Mas outras coisas virão à tona, e ao que parece a família Hacker, que administra os municípios de Sirinhaém, Rio Formoso e Tamandaré, todos pelo PSB, partido do governador do estado de Pernambuco. Somente agora, Mirtes descobriu que seu nome consta na lista de funcionários com cargos comissionados pela prefeitura de Tamandaré. Na nossa política, vide o presidente e sua família, isso nem mais impressiona
Poderia reproduzir aqui a carta assinada por Sarí Gaspar após três dias de silêncio, o que o leitor terá conhecimento através da imprensa, mas acho mais justo compartilhar um dos mais de 500 comentários de um internauta anônimo do portal de notícias UOL sobre tudo que até então sabemos e tivemos que suportar como desfecho:
Carta cuidadosamente redigida por advogado e possivelmente até assessoria de imprensa. O fato de ser uma carta aberta, texto curto e direto, buscando associar a imagem da patroa a uma benfeitora da família da empregada, e a assinatura que desvincula o nome a seu clã político evidenciam isso. Igualmente, ao citar "ódio das redes sociais", "linchamento virtual", e a relação afetiva que ela teria com a mãe, avó, e o menino, são estratégias para gerar empatia e comoção no leitor. Parece até que estudou Análise do Discurso só para escrever a carta. Em tempo, não duvido que ela esteja sofrendo com a morte do menino, mas em nenhum momento assume abertamente a culpa, ou seja, por meio de palavras concretas. É como se quisesse dizer "já pedi perdão e então parem de me atacar, vida que segue". Não é tão simples. O "ódio" das redes é por uma punição justa. Não houve acidente quando se assumiu o risco de matar. E a empregada ainda era usada como laranja.”
A quem acha que pode ainda condenar a doméstica, por ter levado seu filho ao trabalho, não é demais lembrar: as creches estão todas fechadas em decorrência da pandemia do coronavírus. A avó da criança, que também trabalhava com a filha para seus ex-patrões, precisou faltar o trabalho no dia. Ambas contraíram covid-19, a quem ainda se pergunta por que estaria uma empregada prestando serviço em tempos de quarentena. E ao que ainda se sabe, não consta que o prefeito de qualquer cidade do Brasil tenha direito à empregada doméstica paga pela prefeitura. Com quase 9 mil seguidores no Instagram, a conta oficial de Sérgio Hacker foi excluída. Do edifício onde moravam também se mudaram. Mas o povo não se rende, um protesto pacífico, com todas as medidas de distanciamento, foi até a frente do edifício cobrar das autoridades de justiça nesta sexta-feira.
O racismo mata sufocando (George Floyd), mata pelo descaso (caso Miguel). Fosse o contrário, a pena já estaria posta. Miguel sonhava ser policial, Sarí interrompeu. A luta segue e todas as nossas forças e bons sentimentos são direcionados à família do pequeno Miguel. Nosso país escravocrata segue matando seu povo negro, saindo ileso de suas atitudes, se equiparando na justiça que resguarda o nome e a culpa de uma também mãe rica que não se importa com uma criança desorientada enquanto seus filhos estão bem guardados e longe do perigo.
P.S.: Nossas leis precisam urgentemente parar de proteger irresponsáveis assassinos, mas como mudar se as mesmas são para proteger justamente quem paga para não ter a pena que lhe cabe por seu atos?

protesto #justiçaparamiguel em frente as "Torres Gêmeas"



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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.