por
Cinthia Kriemler_
Março
de 2018. Quênia.
Eutanásia.
O último rinoceronte branco do norte está morto. Sudan, 45 anos, se
torna parte das espécies e subespécies dizimadas pelo único
predador que mata por ignorância, por lucro. E sempre por prazer. Um
macho de sorte — mesmo que sorte seja uma palavra estranha de
significado. Não foi abatido como caça. Sobreviveu. Capturado aos
10 meses de idade, foi enviado para um zoológico. Por 36 anos
agradou humanos. Morre, agora, num santuário. E santuário também é
uma palavra de significado incomum. Um cativeiro cercado por boas
intenções. Uma fração da história que deveria ter sido. De um
jeito ou de outro, Sudan foi uma vida desvirtuada. Deturpada em seu
roteiro original. Fecha os olhos cercado pelos soldados que o
protegem, pelos cuidadores e pelos pesquisadores que o observam há
quase uma década. E quando o seu corpo de dois mil e trezentos
quilos — tomado por uma infecção generalizada — segue para o
descanso da morte, ainda ostenta, intocado, o cobiçado chifre que
fez dele um alvo por toda a sua vida. Sudan é o último macho dos
rinocerontes brancos do norte. Mas o seu sêmen congelado ainda é
esperança de rebentos. Multiplicados, alimentarão a lenta e difícil
tentativa de reverter a extinção da subespécie. Se os caçadores
não se reproduzirem como pragas, se a cobiça não caminhar mais
rápido do que a ciência, se todos os obstáculos forem superados,
talvez seja possível repovoar a savana.
Não
há lágrimas pelos rinocerontes brancos do norte. São apenas
bichos.
Abril
de 2014. Chibok, Nigéria.
Negras.
Virgens. Crianças. 276 meninas sequestradas de uma escola em Chibok
por fundamentalistas islâmicos do Boko Haram. Em nome do fanatismo,
da dominação e do ódio, essa trindade depravada. Afastadas de suas
famílias, impedidas de suas crenças, privadas de qualquer
dignidade. Pasto fresco para as bestas que justificam atrocidades em
nome de um deus falsificado, omisso, cúmplice. Caças impotentes.
47
fugas. 117 libertações em trocas árduas com o governo. Mas 112
meninas de Chibok nunca mais são vistas. Para elas, não há a
proteção do santuário. Só o cativeiro. E as curras que não
cessam. E a parição de bebês indesejados que crescem ao lado de
seus reprodutores selvagens, influenciados pela bestialidade de
crenças pervertidas. 112 meninas-matrizes, como as cadelas
acorrentadas que cruzam e cruzam sem descanso até a morte por
infecção, por inanição ou por maus-tratos.
Não
serão resgatadas. Não têm nome ou foto nos jornais. São apenas
meninas negras da África. Descarte.
Fevereiro
de 2018. Dapchi, Nigéria.
Não
bastaram. O sequestro das 276 meninas de Chibok. Os casamentos
forçados. A destruição das identidades. O aniquilamento dos
alicerces psicológicos, religiosos e morais. As crianças geradas
por espermas sem nome. Mais 110 são raptadas em Dapchi. Meninas. Em
plena luz do dia. Porque a luz do dia parece ter se tornado uma
sentinela inútil e impotente. Em igualdade perversa, as meninas
nigerianas de Dapchi são como as meninas de Chibok. E como os
rinocerontes brancos do Quênia. Indefesas. Caçadas. Afastadas de
suas histórias originais. Exiladas. Cativas. Desenraizadas. Vítimas
da mesma ganância. Neles, o que se cobiça são os chifres. Nelas,
os úteros.
No
mundo, tudo permanece silêncio. São apenas estatísticas ruins do
Terceiro Mundo.
2
de setembro de 2015. Costa da Turquia.
Aylan
Kurdi não vence o mar. Como poderia? [... as águas são
rotas de braços frios / que adormecem bebês / meninas, bebês
meninos / para entregá-los, purificados / a um Criador
envergonhado]. Aylan Kurdi é só um menino de três anos. Sírio.
Como a maioria dos refugiados que fogem das guerras pelo poder. Aylan
Kurdi é mais uma criança afogada numa praia da Turquia. Vira
notícia porque a turca Nilüfer Demir e sua câmera estão em
vigília na areia trágica. Ah, os fotógrafos! Esses seres
despudorados que denunciam com suas lentes o que os olhares frágeis
das pessoas frágeis preferem não ver. Ver é inquietação. Por
isso, talvez, o mundo não tenha chorado por Galip, 5 anos, irmão de
Aylan. O corpo dele não chegou à praia. Não foi fotografado.
Não
ver é a alienação desejada.
Aylan
e Galip saíram de casa para morrer no mar. Sem entender por que
deixaram para trás o seu país. Crianças não entendem as guerras.
Não deveriam, igualmente, fazer parte delas. Nem deveriam ser
arrancadas das suas referências para serem jogadas no cativeiro do
exílio.
Aylan
e Galip fazem parte da cegueira cômoda. Afinal, são apenas meninos
sírios.
20
de setembro de 2019. Morro do Alemão, Brasil.
Morro
do Alemão. Ou qualquer outro morro. Desde que seja morro. Ágatha
Vitória cai. 8 anos. Tiro nas costas. De fuzil. Coisa de covarde
fardado. Mais uma — e já foram tantas. Crianças como ela, meninas
como ela. Feitas de sorrisos, de brincadeiras, de fantasias. A de
Mulher Maravilha invocando o sonho de um mundo de justiça e de
mulheres guerreiras. E o pesadelo da realidade se contrapondo.
Ceifando, ceifando, ceifando.
Crianças.
Já nem se trata de quantas. Ágathas, Guilhermes, Alanas, Kayos,
Larissas, Adrielles. Já nem se trata de onde. Nova Holanda, Borel,
Alemão, Guarabu. Faz tempo que essa conta está perdida. E perdido é
o que tudo está. Bala. Homem. Consciência. Futuro.
Outubro
| Novembro | Dezembro de 2019. Em todos os grotões de pobreza.
Caixões
brancos encaixados uns sobre os outros empilham-se em tédio cínico.
Aguardam os hóspedes perpétuos que se deitarão entre suas paredes
finas. E o cheiro do sangue que, mesmo lavado, se entranhará nas
suas fibras fracas como uma droga perigosa, viciante, nauseante.
Meninas. Meninos. De algum morro, de alguma comunidade, de algum
bairro pobre. De qualquer lugar esquecido ou desprezado pela tal
gente de bem.
Há
também covas rasas. Esperando os que não podem pagar pela mísera
decência de um caixão vagabundo. São bocas indigentes essas covas
arreganhadas em espera curta. Sabem que logo será saciada a sua fome
ávida. Mais tarde, corpos pequenos preencherão as suas entranhas.
Perfurados por balas perdidas. Vítimas dos predadores que somos: os
que abatem, os que aprisionam, os que empurram para a morte, os que
perseguem até a extinção. Como os caçadores do Quênia, os
estupradores da Nigéria, o ditador da Síria. Como os homens e
mulheres de farda que atiram pelas costas.
Podemos
fechar os olhos. Mais uma vez. Essa é a nossa
expertise. Podemos desligar a TV, tampar os ouvidos, cobrir a
cabeça. Podemos nos mudar para Paris. Ou para a Finlândia. Quando
voltarmos, tudo estará terminado. E olharemos para o genocídio de
meninas e meninos pobres com toda a piedade hipócrita que nos foi
ensinada pelos nossos pais e pelas nossas igrejas. E nos sentaremos
com um copo de cerveja, de vinho ou de uísque entre amigos que
também terão acabado de voltar de Berlim ou de Barcelona. E
discutiremos planos para reverter a extinção.
Em
nossos planos, só uma falha. Não temos o sêmen do rinoceronte
branco.
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Cinthia
Kriemler
é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora
Patuá,
de O
sêmen do rinoceronte branco
(Contos, 2020). Tudo
que morde pede socorro
(Romance, 2019); Exercício
de leitura de mulheres loucas
(Poesia, 2018); Todos
os abismos convidam para um mergulho
(Romance, 2017) – finalista do Prêmio
São Paulo de Literatura de 2018;
Na
escuridão não existe cor-de-rosa
(Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio
Oceanos 2016;
Sob os escombros (Contos, 2014); e Do
todo que me cerca
(Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena
para pecar em paz
a convite da Editora
Penalux,
em 2017. Tem textos e poemas publicados em diversas antologias e em
revistas literárias.
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