por Alexandra Vieira de Almeida_
Uma
aprendizagem: Memória e Ficção em A
mulher que proclamou a República,
de Aguinaldo Tadeu
No
romance magistral de Aguinaldo
Tadeu,
A mulher que proclamou a República
(Penalux, 2020), o narrador de apossa do real, devora suas carnes e
realiza, num diálogo dinâmico, o entrecruzamento entre ficção e
realidade. Para isso, um elemento serve de ponte entre o real e o
ficcional, a memória, que se apresenta como leitimotiv
para a narrativa acontecer. Composto por 58 capítulos, a obra se
alonga por 325 páginas, em que nela estão inseridas notas no final
de alguns capítulos com dados históricos importantes, como
localidades (Paço
Imperial),
nomes de jornais e revistas (Revista
Ilustrada),
figuras proeminentes, entre outros dados relevantes para a
referencialidade do enredo, que se constrói ricamente por camadas
contrastantes e paralelismos complexos que só enaltecem a escrita de
Aguinaldo. Além desses elementos, encontramos no final uma
bibliografia que serviu de fonte de pesquisa para o escritor,
revelando seu intenso conhecimento dos fatos. O livro se inicia com
uma epígrafe de Machado
de Assis,
bastante pertinente e fulcral para a construção do romance de
Tadeu: “Todos os contrastes estão no homem”. A obra machadiana é
um modelo a ser descortinado pelos olhos do autor por ora aqui
apresentado, que alia erudição, sabedoria e conhecimento da
tradição.
Quando
terminei de ler o romance de Aguinaldo
Tadeu, veio-me à mente o
livro Isaú e Jacó,
de Machado de Assis, com todas as contradições dos irmãos gêmeos
Pedro e Paulo, um monarquista conservador e o outro liberal
republicano, que amam a mesma mulher Flora, que não soube se
encaminhar pela aurora da escolha. Opostos e iguais, os irmãos
expõem os conflitos que permeiam os movimentos monarquista e
republicano, revelando suas diferenças e semelhanças, como os
gêmeos. Logo no início do romance, percebemos o personagem que é o
Marechal Deodoro,
num misto de tristeza e felicidade ao se lembrar do passado. A obra
de Tadeu vai desfiar os fios da memória do primeiro presidente da
República, que confessa ao narrador (em primeira pessoa), seu
secretário Alcides, suas revelações, dando uma verdadeira aula ao
seu empregado, que num processo de aprendizagem, apreende e captura
esta memória perdida no tempo. Para além da grandiosidade do
Marechal, como figura histórica e militar, temos sua humanidade
exposta, com seus desejos, raivas, dever, razão e sentimentos. Uma
personagem singular do passado nos salta aos olhos. Apesar de casado
com Mariana, Deodoro é apresentado como conquistador, tendo fascínio
por uma amante em particular, Adelaide, a baronesa do Triunfo: “Ele
falava dela com amor. Nem parecia o Marechal costumeiramente
carrancudo”. O narrador, jovem e impetuoso, aprende com o mais
velho, símbolo da sabedoria, que lhe dá uma verdadeira aula de
história do Brasil. As revelações ao longo dos capítulos,
apresentadas de forma linear, são contrastadas com a vida do próprio
Alcides, que mostra para o leitor, suas memórias também, revelando
a importância dos pequenos seres e não apenas os vultos da história
dita oficial. Um subalterno colocado como um narrador e confidente de
Deodoro quebra com as expectativas a que estamos acostumados. A
mudança de humor de Deodoro é apresentada ao leitor, que tem diante
de si, um ser complexo e multifacetado, que não se prende às teias
maniqueístas.
A
ficcionalização do real se dá pela transformação do histórico e
documental a partir do ficcional e isso ganha corpo através dos
riquíssimos diálogos que Tadeu constrói. Essa dramaticidade do
gênero teatral que percorre a trama dá o tom maior em sua
narrativa. O grande teórico Terry Eagleton, no seu livro Teoria
da literatura: uma introdução,
já nos disse das contaminações entre o factual e o ficcional,
dizendo que há muito de fictício no real e muito de factual na
ficção, dando exemplos consideráveis desse imbricamento. Ana Maria
Machado nos disse sobre a memória: “A memória não é objetiva,
ela inventa, seleciona, elimina, burila, lixa, tira o supérfluo,
semeia, cria o que lhe apetece. Pelo menos, a dos artistas. É uma
versão, não tem compromisso com os fatos. Como sabiam os gregos, ao
fazer com que as musas fossem filhas de Mnemósine, a memória”.
Aguinaldo
Tadeu, com sua fina ironia,
nos apresenta sua versão da história do Brasil, com todo seu
conhecimento e propriedade, revelando os matizes de um país
multifacetado, inserido em contrastes que apresentavam uma nação
que não seria reconhecida por sua obviedade, mas por sua
complexidade, pois nos mostrou um lado que poderia parecer
desconhecido para o leitor comum, mas que era um dado histórico
colhido de uma de suas fontes, Laurentino
Gomes, que nos presenteou com
o outro lado da história. Em matéria para o jornal “El
País”, este disse: “Cartas
e documentos da época sugerem que, embora tenha ocupado o trono
brasileiro por 49 anos, ou seja, quase meio século, o imperador Dom
Pedro II tinha uma alma republicana. Seu adversário, o marechal
alagoano Deodoro da Fonseca, ao contrário, tinha fortes convicções
monarquistas, embora passasse para a história como o fundador
oficial da república brasileira.”
É isso o que defende o personagem Deodoro neste romance fascinante
de Tadeu, que cria um nó na cabeça de Alcides, que procura entender
a complexidade dessa questão. Aqui, o marechal manipula suas
recordações, organizando-as, recompondo um novo mosaico histórico,
que contradiz a história oficial e que deixa seu secretário Alcides
boquiaberto.
Além
desses elementos, a figura da mulher ganha importância na sua
narrativa, daí o título da obra que revela um fato singular na
história da Proclamação da República, que não cabe aqui
revelarmos e que o leitor precisa descortinar no final da narrativa
como fator surpresa. A mulher tem valor crucial na configuração das
ações masculinas, como Adelaide, a esposa de Deodoro, Mariana, a
princesa Isabel.
Isabel é apresentada como pessoa vanguardista na sua obra que até
idealizou que as mulheres votassem e fossem votadas. Uma figura
feminina avançada para a época. O interessante é como Aguinaldo
situa o leitor na época, como se estivéssemos lá, trazendo todo o
passado para o frescor do presente. Tudo na sua obra é descrito
minuciosamente, não deixando nada na penumbra, nada obscuro. Tadeu
ilumina seus caminhos da escrita e sua obra se caracteriza por sua
iluminação que nos direciona, paradoxalmente, pelos caminhos
ambíguos do real e do ficcional.
A
memória dá uma nova versão sobre os fatos, trazendo à tona, uma
malha plural de nossa realidade, que se descortina para o leitor
através de uma imagem que dimensiona semelhanças e diferenças.
José Saramago nos disse sobre a memória: “Para explicar-lhe meu
ponto de vista do que chamei então a instabilidade seletiva da
memória, isto é, a múltipla diversidade dos agrupamentos possíveis
dos seus registros, evoquei o caleidoscópio, esse tubo maravilhoso
que as crianças de hoje desconhecem, com seus pedacinhos de vidro
colorido e o seu jogo de espelhos, produzindo a cada momento
combinações de cores e de formas variáveis até ao infinito”.
Quando li a obra de Tadeu, tive a impressão de me adentrar nesse
caleidoscópio variado que mostra os vários tons do real em cores
límpidas, mas não obscurecidas. Um universo de cores perpassou a
minha mente que descobriu em sua obra o método comparativo que só
uma aprendizagem pela palavra poderia nos proporcionar.
Um
dos métodos comparativos mais perfeitos no seu romance é a relação
entre o amor e a guerra que são comparados no seu jogo paradoxal e
também pelas analogias, que fazem o encontro singular entre pares
que poderiam parecer inconciliáveis, mas que, pela força da
metáfora e do lirismo, ganham contornos inexplicáveis ao leitor
desatento: “...conquistou mais mulheres pelas cidades que passou do
que derrubou inimigos no campo de batalha.” Ao longo do romance, as
comparações são recorrentes. Quando Deodoro fala do amor de sua
vida, a baronesa do Triunfo, Alcides volta no tempo e fala de como
conheceu sua esposa, a moça cor de café, Nuta. Ao contrário do
conquistador e experiente Deodoro, Alcides se revela, no início,
tímido e inexperiente. Ao longo da narrativa, Alcides ganha destaque
e coragem, como entre suas conversas com Deodoro, que ele provoca,
para arrancar cada vez mais confissões, mesmo que a raiva e a
impetuosidade do marechal o assustem várias vezes durante o enredo.
Nas confissões, há um sabor de quero mais, com sua continuidade,
cortes e interrupções desde a primeira vez em que tais relatos
aconteceram.
Há
um jogo entre Deodoro e Alcides, entre o conhecer e o desconhecer
numa aprendizagem simbólica de ambos os lados, pois se o velho é
visto como sábio, o marechal também aprende com o jovem secretário,
que acaba revelando também algumas de suas confissões, num espelho
invertido, em que mestre e discípulo se contaminam. Por exemplo,
Alcides busca definições de quem era Adelaide, algo indefinido para
Deodoro, um ser poético em sua raiz, pois a poeticidade dela e das
situações vivenciadas entre eles, faz o marechal ter se apaixonado
pela baronesa, mesmo com o desvendamento de seu lado negro e
briguento, uma mulher que foi descrita como um “furacão”. Nesse
embate entre velhice e juventude também há um conflito de gerações.
Além desses contrastes, é recorrente em sua obra a presença e o
diálogo com a natureza, como os passeios de Deodoro e Alcides no
Campo de Santana, que ficava em frente ao sobrado do marechal. Os
pássaros são a metáfora mesmo desse embelezamento da escrita por
seu viés lírico. São de grande beleza as passagens comparativas
com passarinhos pela visão de Deodoro. A natureza é o lugar mesmo
do recolhimento e relaxamento imprescindíveis à sua saúde
debilitada pela dispneia.
O
secretário revela toda sua ansiedade e contradiz a lentidão do
velho marechal que queria contar tudo de forma homeopática para
Alcides. Tanto, que as revelações levam três meses para ocorrer,
entre Deodoro e seu secretário. Este é sempre curioso e ansioso
para que as revelações ocorram logo, causando fúria e brigas entre
os dois. As histórias paralelas entre o marechal e o Alcides se
cruzam num final inusitado. E as notas explicativas, como a do
Chafariz da Carioca, vão clareando o leitor, revelando um poder de
iluminação da escrita, como apresentada anteriormente. Apesar dessa
luminescência, Tadeu nos mostra os duplos da linguagem, através dos
seus maiores contrastes, a diferença na repetição. Outro elemento
predominante na sua escrita, é o papel da gestualidade. Como
expressões faciais e corporais dão um tom ímpar na sua obra,
descortinando para nós os véus da teatralidade. E Deodoro subverte
as máscaras sociais, tanto amorosas quanto históricas: “Deodoro
gesticulava entusiasmado, se lembrando de seus exageros e arroubos do
passado”. E o passado ganha carnalidade através das sensações e
continuidade do presente momento. A memória se mostra como grande
senhora perspicaz na sua escrita. Adelaide superava as mulheres de
sua época pelo corpo e pela alma. Além de bela e exuberante, era
cultíssima, dominando conhecimentos em várias áreas. Os relatos
não cansam o leitor, pois Tadeu, estrategicamente, mescla vários
assuntos, desde os amorosos, aos históricos, e, também, da invenção
das coisas e dos objetos, como o telefone, apresentando uma
pluralidade de assuntos que não se esgotam.
A
relação entre o marechal e o seu secretário não é uma mera
história a ser contada, é uma reinvenção do humano a partir de
uma aprendizagem em que se unem a memória e a ficção. Além do
gênero teatral, há a mistura de outros gêneros como a poesia,
Deodoro cita de memória um poema de
Olavo Bilac. Também comparece
o gênero epistolar, onde o narrador nos envereda pelas cartas de
Adelaide a Deodoro. Além dos contrastes já apresentados, Tadeu nos
mostra os paroxismos entre as figuras femininas, como entre Adelaide
e Mariana: “Mariana é completamente diferente, uma mulher calada,
menos carinhosa e menos intensa”. Assim, aqui, o que está em jogo
não é apenas a história do Brasil, mas a história pessoal de
seres humanos e contrastantes. Por outro lado, temos o outro lado, a
história dos seres anônimos como Nuta, que era ambiciosa e só
queria saber de joias e roupas caras. E Alcides vai fazer algo
irregular para oferecer à mulher amada todos os seus caprichos. Não
convém mencionarmos aqui. Cabe ao leitor descobrir ao longo da
narrativa.
É
interessante observar o lado humano das personagens, sem maniqueísmos
simplistas, mostrando seus acertos e erros, suas virtudes e vícios.
Deodoro, um homem de guerra e militar, se revela como contraditório,
ao chorar quando se relembra de Adelaide e outros fatos do seu
passado. As confissões de Deodoro se direcionam como uma via de
escape para sua solidão. Ele queria dividir com alguém suas
revelações. A vida e a matéria narrada se conjugam. E para
dimensionar todos esses contrastes nada melhor do que uma metáfora
que percorre todo o livro e que era algo que Deodoro amava, o jogo de
xadrez, que serve de mote aquela citação de Machado no início do
livro. Deodoro foi figura importante nos dois períodos: império e
república. Ele transitou nos dois períodos, se encapsulando no
entrelugar da história do Brasil. Deodoro ao longo da narrativa tece
altos elogios à Monarquia. O leitor desbravará esses elementos
enaltecedores do marechal. Além desse fator histórico na sua
narrativa, somos levados por intensos arroubos líricos do narrador,
apresentando toda a beleza da poesia na sua escrita.
Alcides,
como observador perspicaz e inteligente, vai nos revelando um Deodoro
que tinha aversão à política e seus revezes. Alcides evita o
anacronismo e nos descortina a história ligada ao seu próprio
tempo. Tudo era uma questão de tempo. Como no jogo de xadrez, o
secretário revela estratégias para atacar o marechal, conseguindo
tirar dele as confissões necessárias para seu projeto ambicioso,
mas que será abortado no final da história. Apesar das traições,
é a estabilidade do casamento que é enaltecida por Deodoro. Outro
elemento importante no livro é o papel da leitura na vida das
personagens. Alcides aprendeu o gosto pela leitura já quando
trabalhava como copeiro para o imperador Dom Pedro II. E, aqui, a
aprendizagem também ocorria entre o mais velho e o jovem Alcides.
São várias as referências aos nomes das obras literárias no
romance de Tadeu e sua relação com o leitor se dá também pela
ótica da aprendizagem. Nós, leitores, aprendizes dos intensos
conhecimentos históricos e literários do escritor. Nessa relação
simbiótica entre autor e receptor, a sabedoria que aprendemos se
conjuga perfeitamente.
Portanto,
vários motivos são apresentados ao longo do livro para a queda da
Monarquia e um é crucial para a decisão final de Deodoro, que cabe
ao leitor se enveredar nesta floresta enigmática e labiríntica de
Tadeu. Na coragem do enfrentamento de Alcides com relação a
Deodoro, se encontram as mais reveladoras memórias que se abrem para
o leitor como um leque de possibilidades. O romance De Aguinaldo é
realmente excepcional, conjugando o real e o ficcional a partir da
memória, essa mãe de todas as alegrias e dissabores das
personagens, que se aproximam ainda mais por um fator que mudou para
sempre a história do Brasil como é contada no livro, um grande nome
importante e um anônimo, na sua versão ficcional da reconstrução
da Monarquia e da República no Brasil, que são repaginadas pela
narração e pelos diálogos inventivos desse grande escritor que é
Aguinaldo Tadeu.
Disponível no link : Penalux
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Aguinaldo
Tadeu
nasceu em Belo Horizonte, morou em diversas cidades e, atualmente,
anda meio perdido pelas tesourinhas de Brasília. É formado em
História e autor de outros seis livros, passando por contos,
romance, literatura infantil e poesias. Entre eles, está O dono do
rádio, contos, Giostri
Editora,
2011, vencedor da Bolsa de Criação Literária da Funarte. Gosta de
contar e ouvir casos, os reais e os imaginários, tomando um café de
rapadura à beira de um fogão à lenha. Acredita nas coisas mais
simples da vida e vive com a cabeça nas nuvens.
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Alexandra
Vieira de Almeida é
Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta,
contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os
primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40
poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de
poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários.
Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o
Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela
Editora Penalux.