Dois contos de Djania Beserra


por Djania Beserra__

O OLHO ESQUERDO
Um barulho abafado interrompe o silêncio na madrugada sombria. Na casa, aparentemente ninguém percebera. Ao longe, pia uma velha coruja na noturna rotina concorrendo com o indisfarçável eco que se espalha na noite escura. Um vento frio sibilante sacode os galhos das antigas árvores na Praça, formando misteriosas imagens que se chocam e se repelem com violência no asfalto úmido daquele novembro.
Noutra manhã, ela acorda sentindo úmido o travesseiro como se houvesse chorado. Ao lado, a criança esperneia e berra, encerrando o estágio sonho realidade. Sem escolha, se entrega ao pesadelo diário. Sonolenta, alcança a pia. Só então investiga o lacrimejar constante do olho esquerdo, se permitindo uma rápida olhada ao espelho. Mal pode se conter ante a imagem pavorosa projetada à frente. Num grito silencia os cômodos da casa. Já não ouve o choro esganiçado do filho em seu costumeiro despertar, o alarido das buzinas e transeuntes à rua, o apelo do pastor a vociferar impropérios no rádio da vizinha. Já não ouve o marido angustiado à espera de socorro quanto à escolha da camisa, ou a pressa por um café fresco. Já não sente o cheiro enjoativo de pia úmida somado à erva doce do sabonete recém-aberto.
Todos os sentidos convergem a uma única direção: o olho esquerdo que despenca da órbita e paralisa grotesco na face. Num gesto involuntário tenta tocá-lo, num desespero a fazê-lo retornar. Como num pesadelo, ele continua lá, insistente a lhe olhar desenxabido. E, por mais que tente, não pode movê-lo. Tenta fechar os olhos, enche os pulmões de ar e expira lentamente. Uma segunda vez, lentamente. Leva as mãos aos cabelos, organizando-os. Prende-os num coque no alto da cabeça. Apoia as duas mãos sobre a pia, respira mais uma vez, e só então abre os olhos com a esperança e concentração de quem jamais perdera o controle.
Finalmente diante de si, um rosto desperto, no auge dos trinta e três anos, o semblante denunciando dias seguidos sem um merecido repouso, algumas linhas horizontais cismam em marcar-lhe a testa. Mais tranquila, constata a simetria perfeita dos traços. Não resta dúvidas, ainda é a mesma pessoa de ontem e de anteontem. Exceto pela irritação incômoda no olho esquerdo que lacrimeja incontrolavelmente, tivera apenas uma vertigem.
O choro insistente do bebê e a rotina imposta desviam-lhe a atenção. Sai às pressas para socorrer a criança e o marido. Para sua surpresa, este já devolve o bebê ao berço devidamente alimentado, fazendo-o retornar ao sono. Incrédula, ela o observa. Sem lhe dirigir um olhar ele pronuncia qualquer coisa sobre a qual não espera resposta.
Novamente sente a blusa ensopada, volta ao espelho e contempla a imagem grotesca. Ciente de haver sofrido um AVC, leva as mãos ao rosto em desespero, corre a alcançar o marido na esperança de ser levada à emergência neurológica. Tarde demais. Da janela, o vê sumindo na esquina. Busca o telefone e não lembra onde o viu pela última vez. Aos poucos, vence o pavor, retoma os exercícios de respiração. Lembrando-se de Suely, reencontra novamente a calma.
Vai ao quarto dela. Antes de bater à porta, prepara-se para acalmar a empregada ante a cena que esta irá presenciar. Uma batida, duas. Espera, bate uma terceira vez agora mais insistente.
Deixa-se tomar por uma repentina irritação:
Mas o que há com você, criatura?
Olha o relógio e constata o adiantado da hora. Tomada pelo desespero, gira o trinco e vê a cama feita, o quarto organizado. Ao contemplar o armário vazio, corre ao pequeno banheiro, não encontra nenhum vestígio da moça.
O olho esquerdo agora cessara o incômodo gotejar. Disposta a solucionar o fenômeno, volta novamente ao quarto, incisiva.
É só levar o pequeno Vítor à casa de mamãe e ir ao neurologista.
Escolhe mentalmente roupa e sapatos aproveitando o raro silêncio. Ao abrir o closet, o susto: não há nele uma única peça de roupa.
Que diabos está acontecendo?!
A sensação de gritar e não ser ouvida. Tomada pelo pânico, olha ao redor. O chão lhe foge ao se ver refletida: já não lhe escorrem as insistentes lágrimas, já não há um olho esquerdo, ela própria já não está diante do espelho. Corre em direção ao berço, e constata a ausência do filho. Sem se dar conta, desce as escadas como se algo a atraísse à cozinha. Perde os sentidos ante à cena: esquecido entre o fogão e a pia, o corpo de uma mulher jovem, aparentemente trinta e poucos anos, ainda sangra insistentemente como se houvesse tombado há apenas algumas horas.


VITÓRIA
Embora os escombros provassem o contrário, era preciso crer no que disse o moço do noticiário: o grande mal arrefeceu. Para Cida, ainda os dias seriam cinza e metal. No porta retratos empoeirado, os filhos sorriam, os olhos brilhavam. Uma mãe não deveria ser apunhalada assim ao acordar. As coisas invisíveis pesavam mundos. Ausências nunca foram uma novidade, agora paralisavam a velha. Zé não achara vaga no hospital. Os meninos e Maria, por trabalharem lá, contraíram a doença. A neta lhe trouxe a pílula. Vai ser enfermeira, como a mãe. Haverá remédio pra amenizar tanta desgraça?
__ Vó, hoje vamos receber a cesta? A avó engolia a angústia de não saber prosseguir.
Uma hora depois, estava de pé.
__ Maria, bota a chinela, vamos buscar a cesta. __ Vó, meu nome é Vitória!

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Djania Beserra nasceu em Crateús – CE, aos 11 de agosto. Pedagoga. Especialista em Alfabetização de Crianças pela Universidade Estadual do Ceará, atuante na Rede Municipal de Ensino. Dedica-se ao cultivo do conto e da crônica. Teve alguns de seus poemas, contos e crônicas publicados com menção honrosa no último Concurso Ideal Clube de Literatura e Concurso Literário Unifor 2015